quarta-feira, 28 de julho de 2010

Ressurreição Espiritual - C. H. Spurgeon

“Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, ele nos vivificou juntamente Com Cristo”. (Efésios 2:1).

Certamente, meus queridos ouvintes, vocês esperam que eu chame sua atenção, para o glorioso acontecimento que tem sua memória celebrada neste dia pela Igreja cristã. No entanto, isso não é minha intenção. Mas se o assunto que tenho no coração para meditar com vocês não é a ressurreição de Cristo, ao menos podemos dizer que lhe diz respeito em alguma medida. O assunto é este: a ressurreição espiritual do homem pecador e perdido, pelo Espírito de Deus, nesta vida..

Foi aos cristãos de Éfeso, vocês sabem, que o Apóstolo dirigiu as palavras de meu texto; mas elas se aplicam não com menos verdade a todos aqueles que, em uma época ou outra e em qualquer lugar desta terra habitável, foram eleitos em Jesus Cristo, comprados pelo seu sangue, justificados por sua graça. Sobre estes, também, é verdadeiro dizer que mortos em seus delitos e pecados, foram vivificados pelo Espírito de Deus.

Meus irmãos, que espetáculo solene é aquele de um cadáver! Ontem à noite, quando tentei me colocar, por imaginação, diante da realidade da morte, minha alma, eu confesso, recuou assustada. Eu fiquei como um desesperado! “O quê? Disse para mim mesmo, é verdade que este corpo onde sinto o palpitar da vida, será logo um festim para os vermes? Que fora e dentro destas órbitas onde agora meu olhos estão, romperão imundas criaturas, progenitores da corrupção? Que estes membros, hoje cheios de vigor, estendidos em uma imobilidade fria, na abjeta fraqueza da morte, se tornarão um objeto de repulsa invencível, mesmo por aqueles que mais me amam, de sorte que eles gritarão com Abraão: Tirem meu morto de diante de mim !?” Talvez, meus irmãos, vocês não consigam ainda perceber, em todo seu horror, este quadro lúgubre. Diga: não parece estranho, não parece incrível, que você que veio, esta manhã, ao lugar de culto, seja um dia levado ao sepulcro? Que estes olhos que neste momento estão fixos em você, serão velados por uma obscuridade eterna; que estas línguas que há pouco faziam ouvir uma santa melodia, logo serão nada mais que um pouco de lama; que você, meu querido ouvinte, que vejo neste instante diante de mim, com todo o vigor da idade e com saúde, será incapaz de mover um músculo, de articular um som, e se tornará uma massa inerte, filha da fossa e irmã da corrupção? Sem dúvida, ninguém ignora estas verdades sombrias; ninguém as pode revogar; mas não é verdade que, quando as aplicamos a nós mesmos, somos tentados a declará-las como uma impossibilidade? Ah! É que a morte exerce sobre nosso invólucro terrestre, danos tão assustadores, que esta admirável organização, obra-prima do Criador, ela faz em pedaços. É com dificuldade que nossa inteligência terrificada pode acompanha-la em sua obra de vandalismo!

Entretanto, queridos amigos, esforcem-se para fazer uma idéia, a mais exata possível do que é um cadáver, e quando conseguirem, digam para si, eu lhes peço, cada um em particular, que essa é a imagem empregada no meu texto para representar a condição de sua alma por natureza. Na verdade, o Apóstolo não poderia fazer uso de uma metáfora mais justa; porque da mesma maneira que um cadáver é passivo, inerte, insensível, pronto a se decompor, assim é a alma humana, se ela não for vivificada pela graça de Deus. Nós estamos mortos em nossos delitos e pecados; a morte habita em nós, e este germe de morte é suscetível a se desenvolver gradualmente, de tal sorte que, deixados a nós mesmos, poderíamos nos tornar com o tempo, objetos verdadeiramente hediondos, - isso por causa de nossos vícios e nossa corrupção moral, como o cadáver é hediondo por causa da corrupção material. Eis, meus irmãos, o que nos ensina a Escritura, no tocante ao estado moral do homem. Em todas as suas páginas, ela nos diz que desde a queda, o filho de Adão, por natureza está morto; que estar perdido e degradado, num senso espiritual, é estar privado de vida. Ela nos ensina, além disso, que se ele obtém a vida, isso só pode ser graças a uma verdadeira ressurreição operada em sua alma pelo Espírito de Deus, e que esta ressurreição, se deve não a algum mérito que o homem possa ter, mas unicamente ao bom prazer do Pai, a um ato totalmente gracioso de sua infinita misericórdia e soberania.

Esta é, repito, a doutrina que extraímos de todas as partes da Bíblia; é uma doutrina clara, formulada com uma notável precisão nas palavras de meu texto, à qual desejo, meus queridos ouvintes, chamar sua atenção durante alguns instantes. Farei o possível para que minha exposição seja ao mesmo tempo interessante e clara. Na esperança de atingir esse duplo objetivo, ilustrarei meu tema de uma maneira que, numa primeira abordagem, lhes parecerá, sem dúvida, um pouco estranha. Vocês se lembram que durante sua passagem pela terra, o Senhor Jesus fez três ressurreições? Não me consta que ele tenha feito outras. Em primeiro lugar, ressuscitou uma criança de doze anos, a filha de Jairo, que estendida sem vida sobre sua cama, se levantou imediatamente após Jesus pronunciar estas palavras: “Talitha, cumi!” Na segunda vez, Jesus ressuscitou o filho da viúva de Naim, que deitado sobre seu esquife, era transportado para a sua tumba e que acordou de seu sono de morte por estas palavras: “Jovem, eu te ordeno, levanta-te!” Enfim, a terceira e a mais memorável ressurreição operada por Jesus, foi a de Lázaro, o qual não estava mais nem sobre seu leito, nem a caminho da tumba, mas a quem a corrupção já tinha feito sua presa, quando o Senhor, pelo poder de sua palavra, o chamou à vida, gritando em alta voz: “Lázaro, sai para fora!”

Estes três feitos, meus queridos amigos, eu os transportarei, por assim dizer, para o domínio espiritual, e lhes empregarei como tipos ou imagens que representem sucessivamente AS DIFERENÇAS EXTERIORES QUE EXISTEM ENTRE AS ALMAS NÃO CONVERTIDAS, AINDA QUE SUA CONDIÇÃO SEJA FUNDAMENTALMENTE A MESMA; em segundo lugar, OS DIFERENTES MEIOS DE GRAÇA EMPREGADOS PARA VIVIFICAR OS PECADORES, AINDA QUE A VIDA PROCEDA SOMENTE DE UM ÚNICO AGENTE; e em último lugar, AS DIFERENTES MANIFESTAÇÕES DESTA VIDA, QUE NO ENTANTO, EM UM SENSO ABSOLUTO, É UNA.


I.

Eu disse que EXISTEM CERTAS DIFERENÇAS EXTERIORES ENTRE AS ALMAS NÃO CONVERTIDAS, MAS QUE SUA CONDIÇÃO É A MESMA. Acrescento que aquela condição, comum a todos, é a morte. Aproximem-se, meus irmãos, pela imaginação, da filha de Jairo. Vejam-na estendida sobre seu leito; não diriam que a vida ainda está nela ? Os lábios da sua mãe ainda roçam seu rosto; a mão de seu pai segura sua mão, e é difícil a estes pais se persuadirem que sua filha está morta; mas nada é mais verdadeiro que sua morte; tão morta como jamais esteve.

Vejam, agora, este jovem que levam para o sepulcro. Ele está completamente morto; descreva-me sua expressão; ele começa a se corromper; já a cor pálida, precursora da degradação, toma o seu rosto. Entretanto, ainda que a morte seja menos aparente naquela menina que neste jovem, propriamente falando, ela não está menos morta que ele, porque na realidade, na morte não há gradação. Mas eis um terceiro caso onde a morte se revela com mais evidência ainda. É aquele de Lázaro.

Lázaro, aquele cuja irmã Marta, disse: Senhor, ele já cheira mal, porque já é de quatro dias. Entretanto, notem meus irmãos, a filha de Jairo não estava menos morta que Lázaro. Havia diferença quanto à manifestação exterior da morte, mas não quanto à morte em si. Assim é com as almas que ainda não foram vivificadas pela graça de Deus. Eu tenho, sem nenhuma dúvida, neste instante diante de mim, algumas pessoas privilegiadas, que o olho fica alegre em contemplar. De todas as maneiras elas são uma beleza de se ver; belas por suas qualidades morais, como também por seu charme exterior. Parece mesmo que reúnem tudo o que é bom e desejável; e no entanto, se elas são não regeneradas (notem bem isto), elas estão mortas, completamente mortas ! Vejam a filha de Jairo. Não foi dito que ela não era mais que um cadáver ? Uma mão macia e piedosa não tinha ainda fechado os seus olhos; em seu olhar ainda brilhava um último reflexo de luz. Parece uma flor de lis há pouco destacada de sua haste; ela ainda não tinha perdido sua graça. O verme ainda não tinha começado a furar seu rosto ; as cores da vida ainda não tinham fenecido em sua face; ela parecia ainda pertencer ao mundo dos vivos. E mesmo vocês, amadas almas para quem falo, vocês possuem tudo o que o coração pode desejar, exceto a única coisa e mais necessária; se vocês tiverem o sopro divino, o amor do Salvador, não lhes falta absolutamente nada; mas, se vocês não estão unidos a Jesus por uma fé viva, é porque - eu lhes digo com pesar, mas tenho de lhes dizer - vocês estão mortos ! Vocês estão mortos ! Tão mortos quanto os últimos dos pecadores, ainda que sua morte não seja tão aparente.

Mas, ao lado da filha de Jairo, há, certamente, também neste auditório, pessoas que deram um passo a mais, diria eu, na morte espiritual. Há ainda neles, reconheço, algum resquício de bons sentimentos, mas eles começaram a ceder às suas inclinações más. Eles não são mais aqueles intemperantes sem pudor, blasfemadores sem freio; sua conduta não é mais tão escandalosa para que os seus não possam tolerá-los. Como o jovem de Naim, a corrupção encubada em seu interior, ainda não eclodiu abertamente.

Mas, que não abusem: ainda que eles não tenham descido ao último grau da depravação, ainda que o mundo não os expulse de seu seio, eles estão mortos! Eles estão mortos! Tão mortos como os últimos dos pecadores! E não há também daqueles entre estes que me escutam, daqueles homens mais vis, verdadeiros Lázaros espirituais, entre os que a morte revela seu mais odioso aspecto? Como os cadáveres em seu sepulcro, sua alma está em plena putrefação. Seus hábitos são abomináveis; sua conduta inspira inteiramente o horror mais profundo; eles foram colocados no index da sociedade que se respeita; a pedra, de alguma maneira, foi rolada sobre sua tumba. Eles perderam totalmente o senso moral, a tal ponto que aqueles que os conhecem, não querem sustentar nenhuma relação com eles, e parecem gritar à sua maneira: “Tirem este morto de diante de nós, porque não podemos suportar sua visão!” E, entretanto, meus irmãos, - eu insisto neste ponto - essas almas tão corrompidas, tão pervertidas, não estão, na realidade, mais mortas que as outras almas não regeneradas, assim como Lázaro não estava mais morto que a jovem a quem lhe faltava o sopro de vida. Os frutos da morte são mais visíveis, isso é verdade, em uns que em outros, mas todos, igualmente, foram privados da vida; todos, igualmente, necessitam ser vivificados por Jesus Cristo.

Mas, permitam-me, meus amigos, de entrar de alguns detalhes, e de lhes indicar os traços principais que constituem a diferença existente entre as três classes de almas sobre as quais acabo de falar. Para isso, continuemos a examinar o texto, e voltemos, primeiramente, à filha de Jairo. Eis aqui esta jovem. Olhem-na de novo. Sua visão está longe de lhes repugnar; em vez disso ela lhes atrai, não é verdade? Ela está morta, e no entanto, ela é ainda bela. Ainda que sem vida, ela está cheia de beleza e
graça. Que contraste com aquele jovem ! Toda a beleza de seus traços desapareceu! Já é possível supor que os vermes já estão fazendo sua obra; toda a sua glória se desvaneceu. Que contraste, sobretudo com Lázaro ! Este não é mais que um poço de corrupção ! Mas, na filha de Jairo existe, repito, uma beleza exterior. Ocorre o mesmo com muitos daqueles que me ouvem neste momento. Não está, com efeito, cheia de graça aquela jovem alma em quem o sopro impuro do pecado parece ter respeitado sua candura? Quem não lhe poderia amar ? Não é ela amável ? Não é ela bela entre todas? Não é ela digna de ser admirada, até mesmo de ser imitada ? Ah ! Sem dúvida ela é tudo isso; talvez, mais ainda. Eu sou o primeiro a concordar. Mas, infelizmente! Infelizmente! Deus o Santo Espírito ainda não soprou sobre ela; ela não reconheceu Jesus como seu Salvador, nem implorou seu perdão; ela possui tudo, exceto a verdadeira religião; e por isso ela está morta, - morta apesar de toda sua beleza, apesar todos os seus atrativos ! Oh ! Minha irmã, minha querida irmã, por que é preciso que seja assim ? Por que é preciso que você, tão doce, tão amável, tão meiga, tão compassiva, e eu sou obrigado a contá-la entre aqueles que estão mortos em seus delitos e pecados? Como meu Mestre chorou pelo jovem rico, que tinha guardado todos os mandamentos, mas a quem faltava uma coisa, assim eu choro hoje por você ! Sim, choro ao pensar que você, ornada de qualidades tão preciosas, de tantos dons do coração e do espírito, você não está menos mergulhada na morte! Por que, não tenha nenhuma ilusão. Você está morta por tanto tempo, porque não põe sua fé em Cristo. Sua bondade, virtude, excelência, não lhe servirão de nada; você está morta, e não poderá viver se Jesus não lhe der a vida.

Notem, além disso, que a filha de Jairo está ainda rodeada de amigos. Ela acabou de exalar o último suspiro e sua mãe a cobre de ternos beijos. Oh! É possível mesmo que ela esteja morta ? As carícias que lhe fazem, não conseguirão reanimá-la? E as lágrimas ainda quentes que caem sobre ela, não bastarão para fecundar essa terra fria, é verdade, mas que parece ainda tão rica, para que a vida brote de seu seio ? Infelizmente, não! Essas carícias, essas lágrimas, são estéreis; falta a semente da vida; a criança não respira mais; porém, alguém a envolverá nos braços, alguém a cobrirá de testemunhos de amor. Que contraste com aquele jovem ! Ele está estendido sobre seu caixão; ninguém lhe tocará mais, e se alguém o tocar, ficará imundo. Que contraste sobretudo com Lázaro ! Uma pedra está selada sobre ele. Não acontece o mesmo com vocês ? Almas amadas sobre as quais já me referi? Vocês não são objeto do amor de todos ? O povo de Deus mesmo, lhes dirige uma afeição cordial; ele lhes procura, estima, aprova. Seu pastor ora freqüentemente por vocês. Admitidas nas assembléias dos filhos de Sião, vocês se assentam com eles como se deles fizessem parte; vocês ouvem o que eles ouvem; vocês cantam o que eles cantam. E no entanto, infelizmente, a vocês lhes diria: vocês estão ainda na morte. Só lhes falta uma coisa - e é a única que lhes pode salvar; só lhes falta uma coisa - a vida. Em vão os filhos de Deus lhes abrem os braços. Em vão eles lhes acolhem em sua companhia; eles não saberiam acender em vocês esta fagulha sagrada de vida; e se nunca vocês a obtêm, saibam, vocês devem se juntar ao maior dos pecadores para repetir com o Apóstolo: quando ainda estávamos mortos em nossos delitos e pecados, Deus nos vivificou juntamente com Cristo.

Mas, consideremos, ainda, a menina. Notem que ela não foi vestida dos sinais da morte. Nem as faixas e os lençóis a envolvem. Ninguém tirou suas roupas comuns. Ela está vestida exatamente como estava no dia em que, sentindo os primeiros sintomas de sua doença, foi estendida na cama. Ninguém a preparou definitivamente para a morte. Não ocorre o mesmo com o filho da viúva - os aparatos para a sepultura o envolvem. Nem ocorre com Lázaro - está com os pés e mãos atados. Mas outra vez lhes digo, a filha de Jairo está ainda vestida com a roupa típica dos vivos. Assim é a alma simples e ingênua da qual falo. Até o momento, ela parece não ter nenhum hábito pecaminoso, nenhuma tendência má declarada; e enquanto que aquele jovem já está aprisionado nos lençóis de sua má conduta, e que o pecador envelhecido nos seus vícios está ligado pés e mãos em suas paixões desordenadas, esta alma se veste de todos os ornamentos exteriores da piedade. Ela age como os cristãos. Ela fala como eles. Sua conduta parece pura, digna de elogios, irrepreensível. É com muito custo que nela se poderia discernir algum erro. Infelizmente ! Infelizmente ! Querida alma, por que é preciso que tão bela jóia, de aparência tão amável, esteja coberta pela morte ? Inutilmente você enfeitou sua fronte com a jóia da caridade; inutilmente você cingiu seus rins com o casto vestido da pureza exterior; infelizmente, minha irmã, é preciso que eu lhe diga - se você não nasceu de novo, você está ainda na morte ! Sua excelência se desvanecerá como a brisa; suas boas obras passarão como a fumaça, e no dia do julgamento, você será separada dos justos, a menos que Deus lhe dê a vida. Oh! Eu gemo, eu gemo amargamente sobre esta multidão de jovens almas que parecem ter sido preservadas até aqui de toda a sujeira do mundo, mas que não estão menos sem vida e salvação! Oh! Quisera Deus, rapaz, quisera Deus, moça, que desde seus primeiros anos, vocês tivessem sido vivificados pelo Espírito !

Vejam, meus irmãos, observem ainda um detalhe. No caso da jovem, a morte era, por assim dizer, uma coisa secreta. Foi no seu quarto que a menina deu seu último suspiro; foi em seu quarto que seu corpo inanimado repousava, e nada provavelmente deixava suspeitar aos de fora o doloroso mistério escondido naquela casa de luto. Não foi assim com o jovem, porque o haviam transportado até às portas da cidade, e muita gente o tinha visto; nem Lázaro, porque os Judeus vieram de Jerusalém para chorar sobre sua tumba. Mas, a morte da filha de Jairo não teve esse caráter de publicidade, e o mesmo ocorre com as almas que tomei como tipo. Até o momento, seu pecado se esconde na sombra; ele está totalmente no interior. A cobiça foi bem concebida em seu coração, mas o pecado ainda não veio à luz; o germe das paixões está nelas, mas este germe impuro não se manifestou através de atos.
O jovem ainda não levou aos lábios a taça inebriante, ainda que freqüentemente uma voz sedutora lhe tenha oferecido sua doçura; a jovem não abandonou as sendas da virtude, ainda que quase sempre ela ouça as sugestões da vaidade. Em resumo, suas inclinações más, não ultrapassaram os limites do seu tribunal interior; ninguém, talvez, suponha sua existência. Infelizmente, meu irmão! Infelizmente, minha irmã! Como é triste considerar que você, cuja vida exterior é tão louvável, esconda, no entanto, impurezas secretas no quarto de seu coração, e que no centro mais íntimo de seu ser, você leve a morte espiritual, - morte tão verdadeira, ainda que menos evidente, como aquela do pecador mais escandaloso. Oh! Deus queira que você possa clamar ainda hoje: “Apesar de todas as nossas justiças, apesar de todas nossas virtudes, estávamos mortos, como os outros, em nossos delitos e pecados, mas Deus nos vivificou.”

Meus amigos, meus queridos amigos, sofram, eu insisto ainda sobre este ponto. Há almas neste auditório, a respeito das quais eu nutro vivas apreensões. Eu já disse, elas possuem tudo o que o coração pode querer, mas lhes falta uma coisa : elas não amam meu Mestre. Ó jovens, que freqüentam assiduamente a casa do Senhor, cujos muros são irrepreensíveis, por que é preciso que sua piedade seja como uma planta sem raiz ? Ó virgens de Sião, que sempre vemos na casa de oração, por que é preciso que você permaneça sem a graça de Deus no seu coração ? Tenha cuidado, eu lhes suplico, vocês, almas simples, ingênuas, amáveis, inocentes aos olhos dos homens ! Quando chegar o grande dia em que o Senhor separará, ainda uma vez, os vivos dos mortos, eu lhes declaro com dor, se vocês não estiverem convertidos, regenerados, vivificados pelo Espírito de Deus, apesar de toda sua excelência, vocês serão contados com os mortos !

Mas é tempo de deixarmos a jovem menina, para passar ao filho da viúva de Naim. Antes de tudo, observem, meus irmãos, que ele não está mais morto que a jovem; apenas ele está em um estágio mais avançado da morte, se posso assim falar. Venham, aproximemo-nos do cortejo fúnebre; façamos o caixão parar; contemplemos o corpo deitado. Vocês tremem, não é verdade? Vocês desviam o olhar. A aparência da pequena jovem era plena e cheia de cor, mas aqui, a face está escavada e a tez pálida. E os olhos? Oh ! Que mancha escura em volta ! Não lhes parece que os vermes vão logo aparecer, que a decomposição está se processando?

Uma parte de meus ouvintes é assim. Eles são como se estivessem no começo de sua juventude, enquanto seu comportamento estava ao abrigo de qualquer reprovação. Talvez tenham acabado de cair na rede da mulher estrangeira; eles começam a lançar-se na carreira da libertinagem; sua corrupção está para eclodir. Eles não são mais, como dizem, crianças no fim de sua infância. Não é tempo para que eles se emancipem ? Que outros se submetam à absurda escravidão das leis morais; quanto a eles, são livres; eles querem sê-lo. Querem levar vida alegre e assim eles se precipitam num turbilhão de prazeres carnais, de maneira que os sinais da morte espiritual se manifesta neles sempre com maior evidência. Notem mais, meus caros amigos, que se a jovem estava envolvida de cuidados, o jovem, ao contrário, ninguém quer tocá-lo; ele está estendido em seu caixão, e ainda que os homens o carreguem nos ombros, é também verdade que ele inspira a todos os que estão vivos uma repulsa instintiva. Jovem ! Você não se vê com esses traços ? Você não sabe que depois de algum tempo, o povo piedoso e amigo vai tomar distância de você? Ontem ainda, as lágrimas de sua mãe não rolaram em abundância, enquanto exortava seu jovem irmão a fugir de sua companhia, a não seguir seu exemplo ? Sua irmã, sua própria irmã, talvez ao lhe abraçar esta manhã, suplicava ao Senhor que lhe abençoasse nesta casa de oração, - sendo que ela mesma tem vergonha de você; sua conduta tornou-se tão leviana, seus propósitos tão mudados que ela cora ao lhe ver. Há também casas cristãs onde você, outrora, era bem-vindo; você dobrava o joelho com a família reunida; seu nome era mencionado na oração comunitária; mas no momento, suas visitas a essa casa tornam-se mais e mais raras, porque quando você vai lá , lhe recebem com reservas. O pai de família, por nenhum preço, gostaria que seu filho se ligasse a você, porque sabe que você poderia contaminá-lo. Seu amigo, não vem mais, como antes, sentar-se a seu lado para tratar de coisas santas; se ele ainda lhe recebe em sua casa, é simplesmente por boa educação; mas ele não pode mais lhe tratar com sua antiga cordialidade, porque sente que entre sua alma e a sua, não existe mais nenhuma ligação de simpatia. O povo de Deus, paralelamente, lhe testemunha com frieza; ele não lhe rejeita ainda de maneira aberta, mas há, na relação dele com você, um constrangimento que prova claramente que seu estado de morte lhe é bem conhecido.

Um outro ponto de diferença entre o filho da viúva e a filha de Jairo, é que enquanto esta estava vestida com a roupa típica dos vivos, o outro já estava envolto em sua mortalha. E você também, rapaz; você está envolvido em hábitos viciosos. Você sabe que o diabo, com sua mão de ferro, oprime sua alma sempre mais e fortemente. Houve um tempo em que você podia ainda resistir a essa opressão; você dizia que era mestre de seus prazeres; mas agora, o prazer é seu mestre. Jovem ! Eu apelo à sua consciência; seus caminhos não são caminhos de iniqüidade ? Você ousaria negá-lo ? Sem dúvida, você ainda não chegou nos limites da imoralidade e da infâmia; mas, na verdade, na verdade, eu lhe digo meu irmão : você está morto ! Você está morto ! E se o Espírito de Deus não lhe vivificar, você será jogado no vale da Geena, para ser comido pelos vermes que não morrem jamais, mas devoram a alma durante a eternidade. Ah, Jovem ! Jovem ! Eu choro por você, porque ainda que a pedra do sepulcro não esteja sobre você, e sua corrupção moral não esteja tão avançada que lhe faça um objeto de horror e espanto, entretanto, você já deu vários passos na carreira do vício, e quem pode dizer aonde vai parar ? Tome cuidado ! O pecado é um barranco escorregadio e sobre este barranco, quem quer parar não consegue. Quando o verme do sepulcro começou sua devastação, podíamos com o dedo em riste lhe dizer :"Pára". Não, ele prosseguiu sua obra de destruição até o fim. Oh ! Jovem. Deus queira lhe vivificar, antes que você seja tragado por esta consumação de morte que o inferno suspira em lhe ver atingido, e da qual o céu é o único que pode lhe fazer escapar.

Uma última observação sobre o filho da viúva de Naim. O quarto da menina, como já dissemos, foi o único que testemunhou sua morte; mas no caso deste jovem, ao contrário, a morte se mostrava a todos, porque Jesus encontrou o cortejo às portas da cidade. É assim que, entre a primeira classe de almas que tentei descrever, o pecado é mais ou menos secreto; mas em você, meu caro jovem, ele é patente. Ele é manifesto. Você não teme pecar à luz do dia e aos olhos de Deus. Seu desregramento não é mistério para ninguém; mesmo porque, você não está mais preocupado em salvar as aparências. "Eu não sou hipócrita", você diz em um tom desafiador, "não tenho nenhuma pretensão de ser santo; não me envergonho de alguns desvios da juventude." Ah, Jovem, jovem ! Enquanto você fala assim, quem sabe se seu pai não grita em sua amargura de alma : "Quisera Deus que eu estivesse morto antes de ver meu filho conduzir-se assim ! Quisera Deus que ele estivesse deitado na tumba, antes de se engajar na carreira do vício ! Quisera Deus que o dia em que o contemplei pela primeira vez, quando meus olhos se alegraram pela visão de meu filho, ele tivesse sido subitamente tolhido pela morte ! Oh ! Sim, quisera Deus que sua alma infantil tivesse sido recolhida ao céu, e que não tivesse vivido para fazer descer dolorosamente ao sepulcro os meus cabelos brancos !" Jovem, você sabe : seu mal comportamento confessado, seu mal comportamento exposto, por assim dizer, às portas da cidade, traz vergonha sobre a casa de seu pai, inunda de dor o coração de sua mãe. Oh ! Eu lhe suplico, pára ! Oh ! Senhor Jesus, toque o caixão neste instante ! Pare a pobre alma que caminha pela via da perdição, e lhe ordene :"Levanta-te !" Então, esta alma, ressuscitada em novidade de vida, poderá gritar conosco, que por sua graça já gozamos da vida : "Quando estávamos mortos em nossos delitos e pecados, Deus nos vivificou juntamente com Cristo, por meio de seu Espírito !"

E agora, nós chegamos à terceira e última ressurreição feita por nosso Senhor : aquela de Lázaro. Morto e enterrado. Oh ! Meus caros amigos. Eu não posso fazê-los ver a Lázaro em seu sepulcro ! Retirem-se ! Retirem-se para longe dele ! Para onde fugir e escapar do odor infecto deste corpo em putrefação ? Não somente todo o vestígio de beleza desapareceu, mas é difícil ver nele alguma forma humana. Oh ! Terrível espetáculo ! Eu não posso empreender nenhuma descrição; as palavras me faltariam; além disso, vocês não suportariam escutar-me até o fim. Como também, meus irmãos, eu não encontraria as expressões adequadas para descrever o estado moral de um certo tipo de pecadores. Meu rosto coraria de confusão se tivesse que lhes revelar as obras das trevas produzidas cada dia pelos ímpios deste mundo; produzidas, talvez, por alguns dos que me ouvem neste momento. Ah ! Como é terrível a última fase da morte física; a última fase da degradação. Mas aúltima fase do pecado, quão mais terrível ainda !

Vários de nossos escritores modernos, parecem ter uma aptidão particular para revirar aquela lama, para modificar este lodo impuro; mas eu lhes confesso, esta aptidão não é a minha. Também, não vou lhes descrever, meus irmãos, as sujeiras e torpezas do pecador consumado. Eu farei silêncio sobre as abomináveis perversões, concupiscências degradantes, as ações ignóbeis e diabólicas nas quais se afundam aqueles em quem a morte espiritual produziu todos dos seus efeitos nocivos e o pecado se manifestou com toda a sua terrível fealdade. Há, neste auditório, pessoas que pertençam a esta classe
de pecadores ? Pode ser que não seja um grupo numeroso, mas, ouso afirmar, e não será inútil dizer que, como a filha de Jairo, eles não são procurados, nem são objetos do carinho dos cristãos, ou como o jovem de Naim, acompanhados de longe até sua última morada; não, os honestos fogem quando eles se aproximam, tanto é o horror que eles lhes inspiram. Suas mulheres, quando eles entram em suas casas à noite, se escondem para evitar o seu contato. Eles são apontados, são objeto de reprovação de todos. Como a prostituta, da qual nós desviamos o olhar quando a encontramos na rua. Como o pervertido escandaloso, a quem nós nos apressamos em ceder passagem, de medo que ele nos toque ao passar. Estes infelizes estão enterrados no sepulcro de seus vícios; os estigmas da morte espiritual estão impressos em seus rostos; a opinião pública rolou a pedra sobre eles. Eles sabem que para o seu próximo, eles se tornaram objeto de desprezo. Aqui mesmo, neste lugar de culto, eles se sentem incomodados, porque eles não ignoram que se seu vizinho soubesse o que eles são, ele se afastaria aterrorizado. E notem bem um detalhe, meus irmãos : enquanto que no caso do jovem, a morte era de
domínio público, no caso de Lázaro, como no da filha de Jairo, ela está escondida, dentro de estreitos limites; somente que, no caso de Lázaro, nãoé mais no quarto fúnebre que ela se esconde, mas na noite da tumba. Imagem chocante do que há no mundo moral.

De fato, quando um pecador está mergulhado no pecado apenas pela metade, ele peca abertamente. Mas quando mergulha com o corpo inteiro, suas paixões tornam-se tão depravadas que ele é obrigado a praticá-las em segredo. Ele precisa, então, do silêncio e escuridão do sepulcro. Suas concupiscências são de natureza tão detestável, que ele só pode lhes saciar à meia noite; sua corrupção é tão revoltante, que ela precisa ser envolvida pelos lençóis espessos das trevas. Talvez esse Lázaro espiritual esteja na condição mais abjeta; talvez esconda sua vergonhosa existência em algum canto infecto de alguma rua escura. Mas, talvez, ele pertença ao que chamamos de nata superior da sociedade e habite em mansões suntuosas. Ah ! Meus irmãos. Eu lhes direi brevemente, com base nas confissões que me vêm constantemente fazer as almas trabalhadas e arrependidas; Eu me envergonho pela humanidade. Até nas mais altas esferas da escala social, se praticam as mais vergonhosas enormidades. Há em meu rebanho, em minha Igreja, infelizes criaturas cuja perda foi consumada pelos homens de grande nome, de bom berço, altamente colocados, influentes. O atrevimento em minha fala talvez lhes surpreenda, mas por que teria medo de falar o que os outros não têm medo de fazer ? O embaixador de Deus deveria ser menos ousado em repreender do que os homens são para pecar ? Sim, eu lhes declaro fortemente. Em todos os ramos da sociedade, há almas que infectam as narinas do Todo-poderoso. Almas cuja corrupção é mais terrível do que poderíamos dizer ! Elas têm que enterrar suas desordens na tumba do mistério, sem o que elas seriam banidas da sociedade - eu estava quase para dizer da existência ! Entretanto, ó admirável poder da graça de Deus ! Esta última classe de pecadores pode ser salva tanto quanto a primeira. Lázaro, já vitimado pela corrupção, pôde também, confortavelmente, sair da tumba, como a jovem de seu leito. A criatura mais vil, mais depravada, pode, como qualquer outra, ressuscitar em novidade de vida, e ser levada a gritar : "Quando estava morto em meus delitos e pecados, Deus me vivificou por Cristo." Eu espero, meus queridos ouvintes, que vocês tenham se agarrado bem firme à verdade sobre a qual me estendi tão longamente, a saber : que todos os homens, sem exceção, estão por natureza igualmente mortos, mas que a morte neles se manifesta em aspectos diferentes.


II

Eu abordo agora, um outro aspecto de meu assunto. HÁ DIVERSIDADE NOS MEIOS EMPREGADOS PARA VIVIFICAR OS PECADORES, AINDA QUE A VIDA PROCEDA DE UM ÚNICO E MESMO AGENTE. Esta é a segunda verdade que nossa abordagem faz saltar de maneira surpreendente. De fato, a filha de Jairo, o jovem filho da viúva e Lázaro, foram ressuscitados pela mesma pessoa, isto é, por Jesus. Mas a maneira como estas três ressurreições foram operadas, apresenta notáveis diferenças. Quanto à menina, lemos no Evangelho que Jesus tendo segurado em sua mão, lhe disse simplesmente : "Menina, levanta-te." Não foi preciso mais que isso. Uma voz doce e sutil, um leve toque, nenhum barulho, nenhum estrondo, e a menina acordou de seu sono de morte; as pulsações de seu coração retomaram seu ritmo de costume. É assim, meus irmãos, como Deus age freqüentemente em relação às almas puras segundo o mundo, que ele quer converter. Para lhes despertar, ele não usa nem os terrores do Sinai, nem o fogo flamejante, nem a nuvem espessa, nem a tempestade. Ele se limita a lhes abrir o coração, como fez a Lidia, a fim de que ela recebesse a Palavra. A graça divina desce sobre tais almas docemente e sem barulho, como o orvalho sobre as flores. Quando se trata de pecadores endurecidos, esta graça cai sobre eles em torrentes impetuosas, mas é em suaves chuvas que ela se derrama habitualmente sobre as almas que estão ainda na primeira fase da morte espiritual.

O Espírito apenas lhes toca suavemente com seu sopro. Talvez elas mesmas tenham dificuldade em crer na realidade de sua conversão; mas que se assegurem : se elas têm a vida, foi Jesus quem as vivificou, e não obstante tenha sido menos aparente que as outras, sua conversão não é menos verdadeira.

E o filho da viúva de Naim. Recobrou a vida da mesma maneira que a menina ? Não. Observem que, enquanto aquela recebeu a vida no interior de seu quarto, a este foi em público, em plena rua, que ela lhe foi dada. Observem ainda que, neste novo caso, Jesus não tocou o morto, mas o esquife; e os que lhe levavam, pararam. Depois disso, o Senhor pronunciou em alta voz estas palavras impressionantes: “Jovem, eu te digo, levanta-te!” Assim, enquanto Jesus comunica vida nova à menina com uma doce pressão da mão, no caso do menino, o mesmo resultado é obtido, não pelo toque, mas parando seu esquife.É assim que o Senhor agirá provavelmente com você, ó jovem, se ele resolver lhe vivificar. Ele começará por lhe retirar suas ocasiões de queda, seus meios de pecado. A seus companheiros de prazer que, por seus maus exemplos, lhe levam para o sepulcro do vício, ele ordenará que parem. Então, haverá durante algum tempo em sua vida, uma reforma parcial, e finalmente você ouvirá em sua alma uma voz forte e solene que lhe dirá : “Jovem, eu te digo, levanta-te!”.

Em relação à ressurreição de Lázaro, que aparentemente parecia quase impossível, eu lhes rogo, meus caros amigos, releiam com atenção os preparativos extraordinários que o Senhor julgou necessário fazer precedê-la.

No momento de ressuscitar a filha de Jairo, Jesus tinha atravessado o quarto, o sorriso nos lábios, dizendo: “Ela não está morta, mas dorme”. No momento da ressurreição do filho da viúva, ele tinha dito a ela: “Não chore”. Mas nas circunstâncias que estamos considerando, Jesus é mais grave, mais sombrio. Ele está diante de um cadáver se corrompendo em sua tumba. Como sua alma não estaria entristecida ? É nesta ocasião que o evangelista nos diz : E Jesus chorou. E depois que chorou, tremeu dentro de si. Depois ele diz: “Tirai a pedra”. Em seguida, elevando os olhos ao céu, pronunciou esta sublime invocação: “Meu Pai, eu te dou graças por teres me ouvido”. Enfim, depois de recolher-se assim, gritou em alta voz: “Lázaro! Sai para fora!” Coisa digna de nota, esta expressão. Ele gritou em alta voz. Nós não encontramos isso no relato das outras duas ressurreições. Jesus falou aos três mortos. Foi sua palavra que os vivificou, mas parece não ter elevado a voz, exceto em um único caso - o caso de Lázaro.

Há neste auditório uma alma vil entre as vis ? Um ser que chegou ao mais baixo degrau da depravação? Ah! Pecador. Eu lhe direi : possa meu Salvador lhe vivificar ! Ele pode fazê-lo. Mas saiba, isso lhe custará muitas lágrimas ! Sim, quando ele vier lhe disputar com os horrores da dissolução e lhe arrancar desse tenebroso sepulcro onde você afunda em seus vícios, Jesus virá chorando sobre seus crimes, gemendo sobre os horríveis danos que a morte espiritual fez em sua alma ! E mais, há uma pedra sobre você para ser retirada : seus hábitos pecaminosos. E mesmo quando esta pedra tiver sido levantada de sobre você, um som doce e sutil não poderia lhe acordar. Não. Para lhe converter, é preciso nada menos que a voz tremenda do Eterno; esta voz que faz tremer o deserto e quebra os cedros do Líbano. Bunyan, o imortal autor do Peregrino, era um destes Lázaros espirituais. Que meios tremendos foram empregados com ele ! Pensamentos terríveis, angústias tenebrosas, abalos medonhos, - tudo foi feito para lhe vivificar e trazer à salvação. Não diga então, ó pecador, que Deus não lhe ama, se ele terrifica sua alma pelos trovões do Sinai; mas reconheça logo que você estava profundamente mergulhado na morte, para que uma voz menos formidável que a de Cristo pudesse bater em suas orelhas.


III

Mas cheguei à última parte de meu tema. AINDA QUE A VIDA SEJA UMA, ELA SE MANIFESTA DE MANEIRA DIFERENTE. De fato, as necessidades, as experiências, as aspirações de todos os cristãos estão longe de ser as mesmas. Eu teria muito a dizer sobre este ponto, mas sinto que me falta tempo para desenvolvê-lo de uma maneira satisfatória. Depois de ressuscitar os três mortos sobre os quais nos ativemos, o que fez Jesus? “Dá-lhe de comer” - esta foi sua primeira recomendação dada à mãe da jovem menina. Esse foi também o seu primeiro cuidado com o jovem rapaz.

“Desatai-o e deixai-o ir” - esta foi sua primeira ordem com respeito a Lázaro. Parece-me que estas diferentes palavras nos revelam, respectivamente, não somente as necessidades dessas pessoas a quem Jesus acabava de dar a vida, mas também falam das três classes de almas a que temos nos referido. Quando uma alma se converteu antes de ter cedido às seduções do mundo, quando ela foi vivificada pela graça de Deus antes que o germe da morte que está em seu seio tenha se desenvolvido, a nova vida que recebeu se manifesta nela, sobretudo, por um desejo de ser nutrida; de sorte que esta injunção de Jesus corresponde perfeitamente às suas necessidades -"Dá-lhe de comer". Sim, um alimento sadio, uma sólida instrução, eis o que é preciso dar aos novos convertidos. Em geral pouco esclarecidos, eles têm necessidade de ser edificados na fé. Com freqüência, suas idéias sobre o pecado e sobre a salvação não são claras como daquelas almas chamadas ao conhecimento de Cristo, quando já estavam mais avançadas na vida ou no mal. Também, o leite espiritual e puro do Evangelho é mais necessário àquela primeira classe de crentes, do que qualquer outra. Que os ministros da Palavra velem com um cuidado todo particular sobre as ovelhas de seu rebanho; e quando novas almas entrarem no redil, que não esqueçam da ordem do seu Mestre : "Apascente minhas ovelhas". E vocês, jovens, não sejam negligentes em satisfazer essa fome e sede de conhecimentos espirituais, traço distintivo pelo qual se manifesta em vocês a vida divina. Busquem instrução junto ao seu pastor; busquem-na em bons livros; procurem-na, sobretudo, na Escritura. Tal deve ser sua atividade principal - "Dá-lhe de comer". Quanto ao filho da viúva, nos diz o texto sagrado, Jesus o deu à sua mãe. O mesmo, Jesus fará com você, jovem rapaz, se ele lhe fizer passar da morte para a vida. Filho, seu lugar de predileção eram os joelhos de sua mãe, e se Deus não havia lhe convertido antes, é ainda para junto da sua mãe que ele lhe fará voltar. Você procurará com zelo a doçura da vida doméstica, as alegrias puras da família. Ah ! Nada há mais poderoso que a graça divina para estreitar os laços que o pecado havia desfeito. Quando um jovem se entrega à dissipação, logo se afasta da carinhosa influência de uma irmã, da atenção vigilante de uma mãe; mas no momento em que seu coração é tocado, ele sente, novamente, a necessidade do cuidado delas e experimenta ao lado delas um sentimento que nunca antes tinha conhecido. E esta atração não acontecerá somente em relação a seus parentes segundo a carne, mas em relação à grande família dos filhos de Deus. Da mesma maneira que Cristo deu o filho da viúva de Naim à sua mãe, assim, ao lhe comunicar a vida, ele lhe porá nos braços da Igreja, a mãe espiritual de todos os crentes. Portanto, quando você for vivificado, procure sempre com mais zelo a companhia dos justos; porque da mesma maneira que as más alianças lhe transportavam para o sepulcro da perdição, você terá necessidade do apoio de amigos cristãos para lhe sustentar na marcha em direção ao céu.

Chegamos, enfim, à ordem de Jesus relativamente a Lázaro: “Desatai-o e deixai-o ir”. Eu confesso que não posso explicar por que o filho da viúva não estava envolto em faixas como Lázaro. Tenho examinado, inutilmente, inúmeras obras que tratam dos hábitos e costumes orientais. Não consegui elucidar esse fato que, no entanto, é tão evidente no texto sagrado. Nos é dito, com efeito, que logo que Jesus se dirigiu ao jovem, este se assentou e começou a falar.

Enquanto que Lázaro, preso em suas bandagens que tolhiam seus movimentos, e a cabeça envolvida por um lenço que lhe impedia, provavelmente, de articular algum som, parece ter saído do sepulcro com grande dificuldade. Repito, como explicar esta diferença?

Eu estaria inclinado a pensar, que devemos procurar a causa na diferença de classe social. O jovem era filho de uma viúva, que talvez não tenha podido envolver seu filho a não ser em lençóis grosseiros, enquanto que Lázaro, sendo mais rico, foi enfaixado com cuidado, seguindo o costume daquele tempo. O que quer que seja, esse detalhe em si mesmo é de pouca importância, mas o que desejo que vocês notem, meus caros amigos, é a aplicação que podemos fazer da terceira classe de pecadores sobre a qual temos falado. O Senhor, quando os ressuscita, age com o jovem da mesma maneira que fez com Lázaro : depois de lhes dar a vida, ordena que sejam postos em liberdade; ele lhes ajuda a desvencilharem-se de seus hábitos pecaminosos, a romper com os seus vícios. Também, ainda que a nova vida que receberam, em seu princípio e em sua natureza seja exatamente a mesma que aquela que dinamiza todos os filhos de Deus sem exceção, ela se manifesta, mais freqüentemente, de uma maneira totalmente diferente. Para estes, o grande desafio não é nem crescer no conhecimento, nem de andar na comunhão dos santos; não, eles têm que fazer tudo quanto podem, para se desembaraçarem do lençol de seus pecados, para se despojarem de suas paixões carnais. Talvez, infelizmente até à morte, deverão rasgar, peça após peça, farrapo após farrapo, as cadeias que garrotavam suas almas. Este está preso em sua intemperança - oh ! que esforços desesperados ele deverá fazer para dela se livrar. Aquele outro se debate contra seus desejos impuros - oh! que lutas obstinadas terá de travar, antes de poder vencê-los. Um terceiro combate contra seu hábito de jurar - oh! que brava fé terá que ter para refrear as más expressões, sempre prontas a subir sobre seus lábios! Um outro ainda, vagueia com seu amor pelos prazeres e vaidades do século; ele renunciou, mas quantas vezes seus velhos amigos lhe procurarão para lhe atrair novamente para o mundo! Para tais almas, a vida cristã não é outra coisa senão um penoso rasgar, um contínuo despojamento de velhos hábitos, de pecados enraizados, e às vezes essa ruptura só termina quando elas entram no repouso de seu Senhor.

E agora, meus queridos ouvintes, antes de lhes deixar tenho que lhes fazer esta séria pergunta: VOCÊS FORAM VIVIFICADOS? Cuidado! Que vocês sejam bons ou maus segundo o mundo, respeitados ou desprezados pelos homens, eu lhes declaro solenemente, se vocês não foram ressuscitados em novidade de vida, estão mortos em seus delitos; e se vocês deixarem este mundo nesse estado, estarão eternamente perdidos. Entretanto, que ninguém entre vocês se desespere. Cristo pode, ainda, lhes vivificar. Ele pode mesmo vivificar os mais degradados dos homens. Oh! Deus queira que hoje mesmo vocês sejam tocados para a salvação! Quisera Deus que esta voz potente que gritou: “Lázaro, sai para fora!” batesse neste instante nas orelhas dos grandes pecadores, de sorte que, abandonando o sepulcro de seus vícios, o intemperante passasse à sobriedade, a mulher de vida má, para a continência. Deus queira, sobretudo, oh! Deus queira abençoar abundantemente sua Palavra para que as almas jovens, puras, cândidas ainda, que a ouviram neste dia, possam compreender que por natureza estão mortas como as outras, e possam se tornar, desde agora, filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Quanto a vocês, meus caros amigos, que já tiveram a felicidade de serem vivificados, permitam-me lhes dirigir uma única palavra de exortação. Tomem cuidado com as ciladas do diabo. Não tenham dúvida; ele anda continuamente em derredor. Então, vigiem e orem. Que seus espíritos estejam sempre ocupados com bons pensamentos, e assim o adversário não poderá lhes prejudicar. Oh! Eu lhes digo ainda: desconfiem das artimanhas de Satanás. Guardem seus corações mais do que qualquer outra coisa que se possa guardar, porque é do coração que procedem as fontes da vida. Que Deus lhes abençoe, meus mui amados, pelo amor de Jesus.

Pregado na Manhã de Domingo, 12 de Abril de 1857

segunda-feira, 26 de julho de 2010

César Cavalheiro Blog: AS DUAS PARTES DA PALAVRA DE DEUS: LEI & EVANGELHO...

César Cavalheiro Blog: AS DUAS PARTES DA PALAVRA DE DEUS: LEI & EVANGELHO...: "O QUE CHAMAMOS DE 'PALAVRA DE DEUS': SUAS DUAS PARTES - A LEI E O EVANGELHO. Chamamos de 'Palavra de Deus' os livros canônicos do Antigo e..."

AS DUAS PARTES DA PALAVRA DE DEUS: LEI & EVANGELHO

O QUE CHAMAMOS DE "PALAVRA DE DEUS": SUAS DUAS PARTES - A LEI E O EVANGELHO.

Chamamos de "Palavra de Deus" os livros canônicos do Antigo e Novo Testamentos, por terem procedido da boca do próprio Deus.

Dividimos esta Palavra em duas partes principais: uma e chamada "Lei", a outra "Evangelho"'.

O que chamamos de Lei é a doutrina cuja semente é escrita pela natureza em nossos corações. Entretanto, para que nosso conhecimento fosse mais preciso, ela foi escrita por Deus, em duas tábuas e é compreendida, resumidamente, em dez mandamentos. Neles, Deus estabelece para nós a obediência e a perfeita justiça, as quais devemos a Sua majestade e aos nossos semelhantes, em termos contrastantes: vida eterna, se guardarmos a Lei perfeitamente, sem omitir um ponto sequer, ou morte eterna, se não cumprirmos completamente cada mandamento (Dt. 30: 15-20; Tg. 2:10).

O que chamamos de Evangelho (Boas Novas) é a doutrina que não está totalmente em nós por natureza, mas é revelada do céu (Mt. 16:17; Jo. 1: 13) e supera totalmente, o conhecimento natural. Por ele, Deus testifica que é Seu propósito nos salvar graciosamente através de Seu único Filho (Rm. 3:20-22), providenciando que, pela fé, nós recebamos a Jesus como nossa única sabedoria, justificação, santificação e redenção (1 Co. 1:30). Por ele (o evangelho), o Senhor nos testifica todas essas coisas, e o faz de tal maneira, que ao mesmo tempo Ele nos renova de forma poderosa, nos capacitando a receber os benefícios que nos são ofertados. (1 Co. 2:4).

AS SIMILARIDADES E DIFERENÇAS ENTRE A LEI E O EVANGELHO

Devemos prestar grande atenção a estas coisas, em virtude de, com razão, podermos dizer que a ignorância da distinção entre a Lei e o Evangelho é uma das principais origens dos abusos que corromperam e ainda corrompem o cristianismo.

A maioria dos homens, cegos pelo justo julgamento de Deus, nunca consideraram seriamente a maldição sob a qual a Lei nos sujeita, ou o porquê ela foi ordenada por Deus. Quanto ao Evangelho, geralmente o consideram como nada mais sendo do que uma segunda lei, mais perfeita do que a primeira. Disto decorre a errônea distinção entre preceito e conselho, resultando, pouco a pouco, a total ruína do favor de Jesus Cristo.

Agora, devemos considerar estes assuntos. A Lei e o Evangelho têm em comum que ambos provêm de um Deus verdadeiro, sempre consistente com Ele mesmo (Hb. 1: 1 -2). Não devemos pensar, por esta razão, que o Evangelho revoga a essência da Lei. Pelo contrário, a Lei estabelece a essência do Evangelho (Rm. 10:2-4); explicaremos isto mais tarde. Ambos nos apresentam o mesmo Deus e a essência. da mesma justiça (Rm. 3:31), que reside no perfeito amor a Deus e ao nosso próximo. Mas existe uma grande diferença nestes pontos que devemos tocar, especialmente no que concerne aos meios de obter esta justificação.

Em primeiro lugar, como aludimos antes, a Lei é natural para o homem. Deus a imprimiu em seu coração desde a criação (Rm. 1:32; 2:14,15). Quando, muito tempo depois Deus fez e exibiu as duas Tábuas da Lei, não foi para fazer uma nova lei, mas para restaurar nosso conhecimento original da lei natural que, por causa da corrupção do pecado, foi pouco a pouco, sendo removido do coração do homem (Rm. 7:8,9). Mas o Evangelho é uma doutrina sobrenatural, a qual nossa natureza nunca poderia ser capaz de imaginar, nem aprovar, sem uma especial graça de Deus (1 Co. 1:23; 2:14). Mas, o Senhor a revelou primeiramente a Adão, logo depois de seu pecado, como Moisés declara em Gn. 3:15; posteriormente aos patriarcas e aos profetas em degraus crescentes como melhor Lhe parecia (Rm. 1:2; Lc. 1:55, 70), até o dia em que Ele manifestou Jesus Cristo em Pessoa. Ele claramente anunciou e realizou tudo o que está contido no Evangelho (Jo. 15: 15; 6:38). Este Evangelho é revelado por Deus ainda hoje e será revelado até o fim do mundo, através da pregação instituída em sua Igreja (Jo. 17:18; Mt. 28:20; 2 Co. 5:20).

Em segundo lugar, a Lei nos revela a majestade e a justiça de Deus (Hb. 12:18-21). 0 Evangelho nos mostra esta mesma justiça, mas lá ela é apaziguada e satisfeita pela misericórdia manifestada em Cristo (Hb. 12:22-24).

Em terceiro lugar, a Lei nos envia a nos mesmos, a fim de realizarmos a justiça que nos ordena, ou seja, a perfeita obediência aos seus mandamentos, o que e necessário a fim de escapar da culpa. Desta forma, ela nos mostra nossa maldição e nos sujeita a ela, como o apóstolo declara (Rm. 3:20; Gl. 3:10-12). Mas o Evangelho nos ensina onde achar aquilo que não temos, e tendo achado, nos ensina como ser capaz de desfrutá-lo. Desta forma Ele nos resgata da maldição da Lei (Rm. 3:21, 22; Gl. 3: 13,14).

Concluindo, a Lei declara que somos abençoados quando a cumprimos sem omitir nada; o Evangelho nos promete salvação quando cremos, ou seja, quando, pela fé, nos agarramos a Jesus Cristo que tem tudo o que carecemos e muito mais do que necessitamos. Estas duas condições - fazer o que a Lei ordena, ou crer que Deus nos oferece em Jesus Cristo - são duas coisas que são, não somente muito difíceis, mas totalmente impossíveis para a nossa natureza corrupta; não podemos nem mesmo compreender, como o apóstolo Paulo diz em 2 Co. 3;5 e Fp. 1:29. Por isso é necessário adicionar uma quarta diferença entre a Lei e o Evangelho.

Assim sendo, a quarta diferença entre a Lei e o Evangelho é que a Lei , por ela mesma, pode somente nos mostrar e nos fazer ver nossa maldade aumentada e agravar nossa condenação; não por qualquer culpa dela (da Lei), pois ela e boa e santa, mas por causa da nossa natureza corrupta, corroída pelo pecado, ela nos reprova e ameaça, como o apóstolo Paulo declara, através de seu próprio exemplo (Rm. 7:7-14). Mas o Evangelho não somente nos mostra o remédio contra a maldição da lei mas é, ao mesmo tempo, acompanhado pelo poder do Espírito Santo que nos regenera e nos transforma (como dissemos acima); pois Ele cria em nós o instrumento e o único meio de aplicação deste remédio (At. 26:17-18).

A fim de falar mais claramente, interpretaremos as palavras "letra" e "espírito" as quais alguns usam de forma errada. Eu digo que o Evangelho não é "letra", o que significa dizer, que não é somente uma doutrina morta que nos apresenta, em sua pobreza e simplicidade, aquilo que necessitamos para crer: que a salvação é prometida gratuitamente em Jesus Cristo para os que crêem; mas é "espírito", ou seja, um meio poderoso cheio de eficácia do Espirito Santo, que Ele usa para criar em nós o poder de crer naquilo que Ele nos ensina, ou seja, receber salvação gratuita em Jesus Cristo. É deste modo que a Lei que nos mata e condena por nós mesmos, nos justifica e salva em Jesus Cristo, recebido pela fé (Rm. 3:31).

Esta é a razão porque eu disse que a Lei e o Evangelho não são contrários no que concerne a essência da justificação com a qual devemos nos vestir a fim de sermos aceitos diante de Deus e participarmos da vida eterna; mas são contrários com referência ao meio de obtermos esta justificação. A Lei procura em nós esta justificação; não há consideração para o que nós podemos fazer, mas para o que devemos fazer (Gl.3:12). 0 homem na verdade, por sua falta somente, se fez incapaz de pagar; todavia, ele não deixa de ser devedor, mesmo sendo incapaz de pagar. E consequentemente, a Lei não erra em exigir de nós aquilo que devemos, apesar de não podermos fazê-lo. Mas o Evangelho, amenizando o justo rigor com a doçura da misericórdia de Deus, nos ensina a pagar por meio dEle, que se fez nosso Fiador, que se colocou em nosso lugar e pagou nossa dívida, assim como a do principal devedor, e até o último centavo (Cl.2:13,14). Tanto que o rigor da Lei que nos faz tremer e nos derruba completamente, agora nos aprova e aceita em Jesus Cristo.

COM QUE PROPÓSITO O ESPIRITO SANTO USA A PREGAÇÃO DA LEI

Tendo entendido a distinção entre as duas partes da Palavra de Deus, a Lei e o Evangelho, é fácil entender como e com que propósito o Espírito Santo usa a pregação de ambas na Igreja, pois não há dúvida que Ele as emprega para o propósito para o qual elas foram estabelecidas.

Enquanto nossa corrupção reina em nós, somos tão cegos que ignoramos até mesmo nossa ignorância (Jo. 9:41) e, não cessando de abafar a pequena luz do conhecimento que foi deixada para nós de forma a nos tomar indesculpáveis (Rm, 1:20, 21; 2:1), nos deleitamos com o que mais deveria nos desagradar. É necessário, antes de tudo, que Deus, bondoso e cheio de misericórdia, nos faça enxergar claramente o maldito abismo no qual nós nos encontramos. Ele não poderia fazê-lo de melhor maneira, do que nos declarando, através da Sua Lei, o que nós devemos necessariamente ser; pois a escuridão é melhor entendida quando colocada ao lado da luz (Rm. 3:20. 7:13).

Este é o motivo pelo qual Deus começa com a pregação da Lei. Somente nela podemos ver o que devemos ser e também. que não podemos cumprir nenhum dos seus mandamentos. Somente nela podemos ver quão perto estamos de nossa condenação, a menos que obtenhamos um remédio muito forte e eficaz.

E de fato, a estupidez que reinou no mundo no passado e reina hoje mais do que nunca, mostra quão necessário é, que Deus comece deste ponto, a fim de nos conduzir a Ele, nos fazendo conhecer quão grande e certo perigo correm aqueles que fazem pouco caso disto. O fato é, que a Lei não foi dada para nos justificar (pois se assim fosse, Jesus Cristo teria morrido em vão, como Paulo diz (Gl.2:21; 3:18-21), mas, pelo contrário, para nos condenar e para nos mostrar o inferno que está pronto para nos tragar, para aniquilar e degradar totalmente nosso orgulho, fazendo que nossa multidão de pecados passe diante de nossos olhos e nos mostrando a ira de Deus que se revela do céu contra nós (Rm. 1: 18; 4:15; Gl. 3:10,12). Todavia, por um longo tempo os homens tem sido cegos e insensatos. Não somente buscam sua salvação no que os condena total ou parcialmente, ou seja, nas suas obras, ao invés de correrem para Jesus Cristo pela fé, o único recurso contra tudo o que os pode acusar diante de Deus, mas, o que é pior, não, cessam de acrescentar lei após lei as suas consciências, ou, melhor dizendo, condenação após condenação, como se a Lei de Deus não os condenasse o suficiente (GI. 4:9,10; 5: 1 ; CI. 2:8, 16-23). E como um prisioneiro cuja porta da prisão foi aberta, mas que, virando as costas para a liberdade, a qual ele não entende, voluntariamente se tranca na prisão que é mais segura. Esta é então a primeira utilidade da pregação da Lei; fazer conhecidas nossas inúmeras faltas, de forma que começamos a ser miserável e grandemente humilhados. Em resumo, para produzir em nós o primeiro grau de arrependimento que é chamado "contrição do coração"; isto produz uma completa confissão diante do Senhor, pois aquele que não sabe que está doente, nunca irá ao médico. Não há ninguém. mais incapacitado a receber a luz da salvação, do que aqueles que pensam que podem ver claramente, por causa da falta de entendimento sobre quão densa são as trevas nas quais nasceram; tão grande que eles precisam sair dela, e ao contrário, a tornam mais densas e não cessam de avançar, de boa vontade, para dentro delas (Jo. 9:41).



A OUTRA PARTE DA PALAVRA DE DEUS CHAMADA DE "EVANGELHO": SUA AUTORIDADE, O PORQUÊ, COMO E COM QUE PROPÓSITO FOI ESCRITA.

Depois da Lei, vem o Evangelho; o uso e a necessidade dele serão melhor entendidos analisando os pontos abaixo:

Primeiramente, assim como existe somente um Salvador (Mt. 1:21; At. 4;12; 1Tm. 2:5), há também somente uma doutrina da salvação que é chamada de Evangelho, melhor dizendo, Boas Novas (Rm. 1:16). Foi anunciada e declarada ao mundo por Jesus Cristo de forma completa (Jo. 15:15) e pelos apóstolos (Jo. 17:8; 2 Co. 5:19,20), e fielmente testemunhada pelos evangelistas (Ef. 2:20; 1 Pd. 1:25) para prevenir do engano e astúcia de Satanás, que sem isto, colocaria diante dos homens mais facilmente seus próprios sonhos, sob o nome do evangelho; entretanto, ele não falhou inteiramente em fazê-lo, pela justa vingança de Deus que tem sido provocado a ira contra o homem, que, em sua maneira habitual, prefere sempre as trevas ao invés da luz. E quando dizemos que os apóstolos e evangelistas testemunharam fielmente toda a doutrina do evangelho, entendemos com isso, três pontos:

Eles não adicionaram nada deles mesmos no que diz respeito a substância da doutrina (Cl.1:28; 2 Tm. 3:16,17), mas obedeceram com precisão e simplicidade o que Deus lhes disse: "Ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado"(Mt. 28:20); e o apóstolo Paulo, escrevendo aos coríntios, professa que assim ele faz (1 Co. 11:23).

Eles não omitiram nada que seja necessário à salvação; pois, de outro modo, teriam sido desleais com a sua comissão, o que não é possível. Também vemos o apóstolo Paulo (At. 20:27; Gl. 1:9) e o apóstolo Pedro (1 Pd. 1:25) testificarem quão conscienciosos e específicos eles foram a este respeito (Jo. 15:15; 16:13). Daí porque, Jerônimo, escrevendo sobre este assunto, diz, "o discurso pronunciado de forma ininteligível, através de sons rápidos e inarticulados, não deve ser acreditado sem a autoridade da Santa Escritura". E Agostinho fala ainda mais claramente "É verdade que o Senhor Jesus fez muitas coisas que não foram escritas, pois o próprio evangelistas testifica que Ele disse e fez muito mais do que foi escrito. Mas Deus escolheu registrar aquelas coisas que são suficientes para a salvação daqueles que crêem"(Jo. 20:30,31).

Aquilo que eles escreveram, foi escrito de tal forma que a pessoa mais inculta e ignorante do mundo, pode aprender lá o que é necessário para sua salvação, desde que confrontada (1 Co. 1:26,27), de outra maneira, porque o Evangelho foi escrito numa linguagem que todos podem entender (1 Co. 14:6-40), e no idioma mais familiar e popular possível (1 Co. 2:1). Daí porque Paulo diz que se o Evangelho está oculto, está para aqueles que se perdem e para os que o deus deste mundo cegou, ou melhor dizendo, para os incrédulos (2 Co. 4:3). E, de fato, a experiência de todas as épocas tem mostrado que Deus não chamou os mais sábios e cultos, mas, pelo contrário, os mais ignorantes do mundo (Is.29:14; Lc.10:21; 1 Co.1:26, 27; 3:18). Portanto, dizer que Deus desejou esconder ou encobrir Sua doutrina de forma que ninguém pudesse entender, está longe da verdade.

Chegamos então a duas conclusões, a partir deste raciocínio, que são úteis para o que estamos tratando:

A primeira é que não é necessário reconhecer como Evangelho, qualquer coisa adicionada pelo homem à Palavra escrita de Deus, ou melhor dizendo, às doutrinas contidas nos livros do Velho e Novo Testamento; mas que todas as adições são meras superstições e corrupções do único e verdadeiro Evangelho de nosso Senhor (Mt. 15:9). Paulo fala sobre isto em Gl. 1:8,9; 2 Tm. 3:16,17 e Jerônimo escreveu sobre este assunto " O que é dito sem a autoridade da Santa Escritura, é também, do mesmo modo, facilmente deixado de lado".

A segunda conclusão é que aqueles que dizem que somente algumas pessoas são autorizadas a ler as Escrituras e, por esta razão, não a querem traduzida para os idiomas falados por temer que mulheres simples e outras pessoas possam lê-la (Rm. 1:14; Gl. 3:28; Mt. 11:28), são os verdadeiros anticristos e instrumentos de Satanás (Mt. 23:13); eles tem medo de que seus abusos sejam descobertos pela chegada da luz.

A MANEIRA PELA QUAL O EVANGELHO INCLUI, EM SUBSTÂNCIA, OS LIVROS DO VELHO TESTAMENTO

Além disso, pela palavra Evangelho não nos referimos ao que comumente é chamado assim, isto é, algumas passagens extraídas sem razão, e nem de discursos dos livros dos quatro evangelistas ou das epístolas de Paulo. Pelo contrário, entendemos por Evangelho, não somente todo o Novo Testamento, mas também tudo o que foi prometido ou predito no Velho Testamento sobre Jesus Cristo (At. 26:22,23; 28:23; Jo. 5:39; Rm. 1:2), pois como já dissemos, o Evangelho é o único meio pelo qual desde o início do mundo, Deus tem salvado Seus eleitos (Hb. 13:8; At. 4:12). Daí porque, como Moisés declara (Gn. 3:15), Deus começou a anunciá-lo ao mundo desde o pecado de Adão, embora ele foi manifestado e pregado claramente, muito tempo depois, pelo próprio Jesus Cristo e por Seus apóstolos (Rm. 1: 1-6; 16:25,26).

Deste modo, para resumir, chamamos de Evangelho as Boas Novas que desde o princípio, e somente por Sua graça e misericórdia, Deus anunciou a Sua Igreja: aqueles que, pela fé, abraçam Jesus Cristo participarão da vida eterna com Ele (Rm. 3:21,22; Jo. 6:40).

COMO O QUE DIZEMOS SOBRE A AUTORIDADE DA PALAVRA ESCRITA DEVE SER ENTENDIDO. PORQUE É NECESSÁRIO QUE SEJA TRADUZIDO A TODAS AS LÍNGUAS.

Quando dizemos que o Evangelho, escrito e testemunhado da maneira que Deus nos deu, é o único meio ordinário o qual Deus usa para salvar homens (daí porque esta Palavra é chamada A Palavra de Vida e Reconciliação; Jo. 6:68; At. 5:20; Fp. 2:16), nós não paramos nas sílabas, nem no papel e tinta, nem num evangelho pendurado pelo pescoço, ou pronunciado como o mágico pronuncia seus encantamentos, nem num livro de bons exemplos, ou adorado com incenso ou outros atavios. Nunca ofendamos a Deus pela aprovação de tais feitiçarias e sacrilégios.

Mas, em primeiro lugar, fechamos as portas a todas estas fantásticas noções que o diabo tem usado, em todas as épocas, para corromper o homem. E então, ouvimos o Evangelho exposto e pregado de maneira adequada e própria, de forma a entender melhor sua substância (Rm. 10:8; 1 Pd. 1:25)e colocá-lo no coração onde, pela fé, ele pode produzir os frutos do verdadeiro arrependimento (Mt. 13:23; At. 16:14). Os apóstolos mostram isto claramente. Quando Jesus Cristo os envia, na grande comissão, Ele não lhes diz "Ide, lede o Evangelho numa língua desconhecida e adore o livro no qual está escrito", mas lhes diz "Ide e pregai o Evangelho a toda a criatura"(Mt. 28:19). Deixo de lado as objeções feita pelo apóstolo Paulo aos coríntios quando fala sobre os abusos que cometeram em se deleitarem em ouvir línguas estranhas na Igreja de Deus, sem nenhum profeta para explicar o que estava sendo dito (1 Co. 14). Mas como crerão sem que ouçam, tendo em vista que a fé vem pelo ouvir, como o apóstolo Paulo diz em Rm. 10:17? E como ouvirão quando, longe de ser exposto propriamente, é cantado em língua estranha? (1 Co. 14:9, 16-28)?

Também, como alguém pode ser fundamentado na santa e verdadeira doutrina, confortado entre tantas e variadas tentações, advertido a opor-se a falsas doutrinas (Rm. 15:4; 2 Tm. 3:16), sem meditar dia e noite na Palavra de Deus (Sl. 1:2), e examinar cuidadosamente as passagens da Santa Escritura (At. 17:11; Jo. 5: 39)? Assim foi feito na Igreja, até que o diabo, através da justa punição de Deus, removeu esta luz a fim de produzir suas trevas, sem que ninguém percebesse. O apóstolo Pedro é uma testemunha disto, quando escrevendo a todos os crentes, recomenda diligência com a qual eles deveriam tomar cuidado no ouvir a palavra dos profetas (2 Pd. 1:19,20). Pois ele sabia que o que o Senhor havia lhe falado "Apascenta minhas ovelhas"(Jo. 21:15-17, deveria ser ouvido de acordo com a pregação da Palavra da Vida. Paulo, também, expôs a mesma coisa e a praticou (At. 20:27,28).

Contudo, não queremos dizer com isso que é permitido a todos ser um professor na Igreja, e expor as Sagradas Escrituras; pois este ofício pertence àqueles que foram chamados e legitimamente ordenados a fazê-lo (Rm. 10:15). Mas todos devem ler as escrituras e ter conhecimento delas, para confirmar o que está sendo bem exposto na Igreja e rejeitar a falsa doutrina dos falsos pastores. Afirmamos que a leitura das Sagradas Escrituras - adicionando o que é necessário, ou seja, a pura pregação e exposição delas, pois para isto os pastores e professores são ordenados na Igreja (1 Co. 4:2; 2 Co.5:19,20), e não para re-sacrificar Jesus Cristo (Hb. 10:18) ou para gritar em línguas estranhas às pessoas (1 Co. 14:28) - está longe de ser uma heresia; pelo contrário, não há outro meio de extirpar heresias (2 Tm. 3:15-17). E todo aquele que impedir a leitura das Escrituras, tira do pobre pecador, ao mesmo tempo, o único meio de consolação (Rm. 15:4) e salvação (Lc. 1:77; At. 13:26; Ef. 1:13).

COMO O ESPÍRITO SANTO USA A PREGAÇÃO DO EVANGELHO PARA CRIAR FÉ NO CORAÇÃO DO ELEITO E ENDURECER AO RÉPROBO.

Do mesmo modo que a pregação do Evangelho é um aroma de morte para os rebeldes que endurecem seus corações, é também aroma de vida para os filhos de Deus (2 Co. 2:15,16). Não que a força e poder de salvar resida no som da palavra ou venha da energia de quem prega (1 Co. 3:7,8). Mas o Espírito Santo, cujo ofício estamos descrevendo, usa a pregação como um tubo ou canal; Ele penetra na profundeza da alma, como o apóstolo fala (Hb. 4:12; 1 Pd.1:23), com o propósito de dar, somente por Sua graça e bondade, entendimento aos filhos de Deus para os capacitar a perceber e compreender o grande mistério da sua salvação através de Jesus Cristo (At. 16:14; Ef. 1:18,19). Então, Ele também corrige seus julgamentos, para que eles aprovem, com sabedoria proveniente de Deus, aquilo que o sentido e a razão costumam achar loucura (1 Co. 2:6-16). Além disso Ele corrige e muda suas vontades de tal maneira, que com afeição ardente, eles abraçam e recebem o único remédio que é oferecido em Jesus Cristo (Fp. 1:29; At. 13:48) contra o desespero no qual, sem ele, a pregação da Lei necessariamente os conduziria (Ef. 2:1,4,5).

Assim é que o Espírito Santo, pela pregação do Evangelho, cura o ferimento que a pregação da Lei expôs e agravou (Rm. 6:14); como o Espírito Santo, pela pregação do Evangelho, cria em nós o dom da fé que vem, ao mesmo tempo, para tomar posse daquilo que é necessário à salvação em Jesus Cristo; isto é o que mostramos abaixo.

O OUTRO FRUTO DA PREGAÇÃO DA LEI, UMA VEZ QUE A PREGAÇÃO DO EVANGELHO REALIZOU, EFICAZMENTE, SEU TRABALHO.

Entre os efeitos que Jesus Cristo produz, quando habita em nós, mostramos não completamente, que Ele cria em nós um coração puro (Sl. 51:10) para conhecer (Jr. 24:7), desejar e fazer o que é de Deus (Fp. 2:13); anteriormente éramos escravos do pecado (Rm. 6:22), inimigos de Deus (Ef. 2:12), incapazes até mesmo de pensar qualquer coisa boa (2 Co. 3:5).

Assim, quando nossa disposição foi mudada, a pregação da Lei também começa a mudar seu efeito em nós, de tal forma que ao invés de aterrorizar-nos, nos consola (1 Jo. 2:17; 2 Pd. 1:10,11); ao invés de nos mostrar quão perto nossa condenação está, ela nos serve como guia para nos ensinar boas obras (Jr. 31:33; Rm.7:22) as quais Deus propôs que andássemos nelas (Ef. 2:10); finalmente, ao invés de ser um jugo desagradável e insuportável, torna-se agradável e leve para nós (Mt. 11:30). Nos resta somente uma tristeza: a de não sermos capazes de obedecer perfeitamente, como gostaríamos, por causa da nossa corrupção remanescente, que luta contra o Espírito (Rm. 7:22,23). Mas toda esta tristeza não nos conduz ao desespero, mas antes nos conduz a orar ardentemente a nosso Pai que nos fortalece mais e mais (Rm.8:23-26). A fé, que é a testemunha do Espírito de Deus clamando em nossos corações (Rm.8:15), nos assegura que a maldição da Lei foi eliminada pelo sangue de Jesus Cristo que nos une (Rm. 8:1); além disso, a mesma fé também nos assegura que o Espírito dominará, por mais que demore (Rm. 6:14), e até mesmo a morte será o caminho da nossa vitória (Jo. 5:24; 1 Co. 15:26,54; Hb. 2:14). Desta maneira, é concluído em nós, gradualmente, o verdadeiro arrependimento, que vem da verdadeira conversão; começa com contrição ou sentimento de pecado, e progride pela regeneração de tudo o que há no homem, visível e invisível (1 Ts. 5:23). Daí concluirmos que isto leva todo verdadeiro penitente a confessar sua falta diante de quem ofendeu, e mesmo diante de toda a assembléia da Igreja, se for necessário. Esta confissão deve vir acompanhada, a medida do possível, com restituição e satisfação concernente ao próximo, pois, sem isso, o arrependimento pode ser só fingido e simulado. Dessa maneira, é fácil perceber que nós não rejeitamos, mas, pelo contrário, requeremos como necessário à salvação, a verdadeira confissão que foi ordenada por Deus. Contudo, não temos o desejo de atormentar consciências pela confissão auricular (como é chamada), que o homem inventou em lugar da verdadeira confissão e arrependimento, nem de estabelecer diante de Deus qualquer outro deleite a não ser Jesus Cristo.

O SEGUNDO MEIO QUE O ESPÍRITO SANTO USA PARA NOS CAPACITAR A TER PRAZER EM CRISTO E O PORQUÊ O SENHOR NUNCA SE SATISFAZ SOMENTE COM A PREGAÇÃO DA SUA PALAVRA.

Dissemos que os sacramentos são os outros meios, ou instrumentos, pelos quais o Espírito Santo aplica em nós tudo que é necessário, à salvação. Mas, desde que por esta palavra (sacramento) se entende, geralmente, todos os sinais pelos quais qualquer coisa sacra ou espiritual nos é apresentada, é necessário, antes de tudo, limitar o significado da palavra.

Por esta razão, devemos entender que nosso Deus, que é perfeitamente misericordioso, em usar nossa natureza pobre e miserável como um melhor meio de manifestar Sua bondade e longanimidade, não se satisfaz em simplesmente nos fazer conhecer e nos mostrar, os meios pelos quais Ele se agrada em nos salvar. Contudo, mesmo nisto, Ele usa incompreensível gentileza e compaixão em nos informar Sua vontade através de homens semelhantes a nós (Dt. 18:15; Fp. 2:7; 2 Co. 5:19,20). Mas, em adição, para coroar sua infinita bondade, Ele desejou adicionar à pregação de Sua Palavra, certas ações destinadas a compelir, o mais inculto e obstinado, a crer mais e mais que Deus não está zombando deles quando lhes oferece vida eterna do modo mais surpreendente - a morte de seu próprio Filho. Assim, por tais sinais e ações, todos os seus sentidos são dirigidos a concordar com a doutrina do Evangelho, como se estivessem já gozando plenamente a salvação que lhes é prometida. Do mesmo modo, nós vemos (se é apropriado comparar os negócios que temos no mundo e a incompreensível bondade de Deus) que, quando a posse de algo nos é concedida judicialmente, certas cerimônias e ações serão usadas no ato de receber a posse ou de executar a fiança, com o fim de nos assegurar e testificar a outros que tais e tais bens pertencem a nós. Mesmo em nossos negócios civis, embora um advogado tenha assinado um contrato e aposto os nomes das testemunhas, o selo do oficial onde o contrato foi firmado, será fixado, a fim de conceder ao contrato maior validade e autenticidade (Rm. 4:11).

Deste modo, desde o início, nosso Deus não se contentou apenas em anunciar a Adão a graça pela qual Ele propôs salvar Sua Igreja mediante Seu Filho; Ele desejou acrescentar, além disso, sacrifícios, como figuras vivas do futuro sacrifício de Jesus Cristo, para fortalecer a fé de Seus filhos na redenção que esperam (Hb. 11:4). Então, depois disso, renovando esta aliança de graça e misericórdia com Abraão, Ele adicionou a isso, o sacramento da circuncisão (Gn. 17:10,11 ). Finalmente, nos dias de Moisés, adicionou o sacramento do cordeiro pascal e muitas outras cerimônias (Ex. 12). Estes eram sacramentos que representavam, aquilo que Jesus realizaria em Seu tempo, melhor dizendo, todo o mistério da salvação. O apóstolo declara isto amplamente nas epístolas aos Hebreus.

Mas quando o tempo determinado por Deus chegou, Jesus Cristo, por Seu advento, pôs um fim a tudo que prefigurava Sua vinda. Pôs um fim às sombras e aos sacramentos do Velho Testamento e trouxe ao mundo outra grande claridade de forma que, dali em diante, os homens devem adorar a Deus mediante um culto mais puro e espiritual, mais próximo da natureza de Deus que é Espírito (Jo. 4:21-25). Entretanto, tendo ainda consideração com a nossa natureza frágil e entorpecida, Ele adicionou alguns sacramentos e sinais externos à pregação de Sua eterna Palavra, para melhor nutrir e sustentar nossa fé, pois, apesar de Jesus Cristo ter nos inocentado por Sua morte, enquanto estamos na Terra, possuímos o Reino Celeste somente pela esperança (Rm. 8:24; 1 Co. 13:9); é necessário que sejamos suportados a fim de crescermos e perseverarmos até o fim (E£ 4:15).
Theodore Bezera

A Doutrina Reformada da Autoridade Suprema das Escrituras

Paulo Anglada*


A doutrina que me proponho a considerar neste artigo foi de fundamental importância na Reforma Protestante do Século XVI. Em contraposição, por um lado, à doutrina católica romana de uma tradição oral apostólica e, por outro lado, ao misticismo dos assim chamados entusiastas ou reformadores radicais, os Reformadores defenderam a doutrina da autoridade suprema das Escrituras. Essa foi, portanto, a resposta deles à autoridade da tradição eclesiástica e do misticismo pessoal.

A autoridade suprema das Escrituras também é uma doutrina puritano-presbiteriana. A ela os puritanos tiveram que apelar freqüentemente na luta que foram obrigados a travar contra as imposições litúrgicas da Igreja Anglicana.1 A Confissão de Fé de Westminster professa a referida doutrina em três parágrafos do seu primeiro capítulo. No quarto parágrafo, ela trata da origem ou fundamento da autoridade das Escrituras:

A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma verdade) que é o seu Autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a Palavra de Deus.

O parágrafo quinto aborda a questão da certeza ou convicção pessoal da autoridade das Escrituras:

Pelo testemunho da Igreja podemos ser movidos e incitados a um alto e reverente apreço pela Escritura Sagrada; a suprema excelência do seu conteúdo, a eficácia da sua doutrina, a majestade do seu estilo, a harmonia de todas as suas partes, o escopo do seu todo (que é dar a Deus toda a glória), a plena revelação que faz do único meio de salvar-se o homem, as suas muitas outras excelências incomparáveis e completa perfeição são argumentos pelos quais abundantemente se evidencia ser ela a Palavra de Deus; contudo, a nossa plena persuasão e certeza da sua infalível verdade e divina autoridade provém da operação interna do Espírito Santo que, pela Palavra e com a Palavra, testifica em nossos corações.

O décimo e último parágrafo desse capítulo confere às Escrituras (a voz do Espírito Santo) a palavra final para toda e qualquer questão religiosa, reconhecendo-a como supremo tribunal de recursos em matéria de fé e prática:

O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares; o Juiz Supremo, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura.

Em dias como os que estamos vivendo, em que cresce a impressão de que o evangelicalismo moderno (particularmente o brasileiro) manifesta profunda crise teológica, eclesiástica e litúrgica,2 convém considerar novamente essa importante doutrina reformado-puritana. Convém uma palavra de alerta contra antigas e novas tendências de usurpar ou limitar a autoridade da Palavra de Deus. Tal é o propósito deste artigo.

I. Definição
O que queriam dizer os Reformadores ao professarem a doutrina da autoridade das Escrituras? Que, por serem divinamente inspiradas, elas são verídicas em todas as suas afirmativas. Segundo esta doutrina, as Escrituras são a fonte infalível de informação que estabelece definitivamente qualquer assunto nelas tratado: a única regra infalível de fé e de prática, o supremo tribunal de recursos ao qual a Igreja pode apelar para a resolução de qualquer controvérsia religiosa.

Isto não significa que as Escrituras sejam o único instrumento de revelação divina. Os atributos de Deus se revelam por meio da criação: a revelação natural (cf. Sl 19:1-4 e Rm 1:18-20). Uma versão da sua lei moral foi registrada em nosso coração: a consciência (cf. Rm 2:14-15), "uma espiã de Deus em nosso peito," "uma embaixadora de Deus em nossa alma," como os puritanos costumavam chamá-la.3 A própria pessoa de Deus, o ser de Deus, revela-se de modo especialíssimo no Verbo encarnado, a segunda pessoa da Trindade (cf. Jo 14.19; Cl 1.15 e 3.9).

Mas, visto que Cristo nos fala agora pelo seu Espírito por meio das Escrituras, e que as revelações da criação e da consciência não são nem perfeitas e nem suficientes por causa da queda, que corrompeu tanto uma como outra, a palavra final, suficiente e autoritativa de Deus para esta dispensação são as Escrituras Sagradas.

II. Base Bíblica
A base bíblica da doutrina reformada da autoridade suprema das Escrituras é tanto inferencial como direta.

A. Base Inferencial
É inferencial, porque decorre do ensino bíblico a respeito da inspiração divina das Escrituras. Visto que as Escrituras não são produto da mera inquirição espiritual dos seus autores (cf. 2 Pe 1.20), mas da ação sobrenatural do Espírito Santo (cf. 2 Tm 3.16 e 2 Pe 1.21), infere-se que são autoritativas. Na linguagem da Confissão de Fé, a autoridade das Escrituras procede da sua autoria divina: "porque é a Palavra de Deus."

Isto não significa que cada palavra foi ditada pelo Espírito Santo, de modo a anular a mente e a personalidade daqueles que a escreveram. Os autores bíblicos não escreveram mecanicamente. As Escrituras não foram psicografadas, ou melhor, "pneumografadas." Os diversos livros que compõem o cânon revelam claramente as características culturais, intelectuais, estilísticas e circunstanciais dos diversos autores. Paulo não escreve como João ou Pedro. Lucas fez uso de pesquisas para escrever o seu Evangelho e o livro de Atos. Cada autor escreveu na sua própria língua: hebraico, aramaico e grego. Os autores bíblicos, embora secundários, não foram instrumentos passivos nas mãos de Deus. A superintendência do Espírito não eliminou de modo algum as suas características e peculiaridades individuais. Por outro lado, a agência humana também em nada prejudicou a revelação divina. Seus autores humanos foram de tal modo dirigidos e supervisionados pelo Espírito Santo que tudo o que foi registrado por eles nas Escrituras constitui-se em revelação infalível, inerrante e autoritativa de Deus. Não somente as idéias gerais ou fatos revelados foram registrados, mas as próprias palavras empregadas foram escolhidas pelo Espírito Santo, pela livre instrumentalidade dos escritores.4

O fato é que, por procederem de Deus, as Escrituras reivindicam atributos divinos: são perfeitas, fiéis, retas, puras, duram para sempre, verdadeiras, justas (Sl 19.7-9) e santas (2 Tm 3.15).5

B. Base Direta
Mas a doutrina reformada da autoridade das Escrituras não se fundamenta apenas em inferências. Diversos textos bíblicos reivindicam autoridade suprema.

Os profetas do Antigo Testamento reivindicam falar palavras de Deus, introduzindo suas profecias com as assim chamadas fórmulas proféticas, dizendo: "assim diz o Senhor," "ouvi a palavra do Senhor," ou "palavra que veio da parte do Senhor."6 No Novo Testamento, vários textos do Antigo Testamento são citados, sendo atribuídos a Deus ou ao Espírito Santo. Por exemplo: "Assim diz o Espírito Santo..." (Hb 3:7ss).7

A autoridade apostólica também evidencia a autoridade suprema das Escrituras. O Apóstolo Paulo dava graças a Deus pelo fato de os tessalonicenses terem recebido as suas palavras "não como palavra de homens, e, sim, como em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes" (1 Ts 2:13). Que autoridade teria Paulo para exortar aos gálatas no sentido de rejeitarem qualquer evangelho que fosse além do evangelho que ele lhes havia anunciado, ainda que viesse a ser pregado por anjos? Só há uma resposta razoável: ele sabia que o evangelho por ele anunciado não era segundo o homem; porque não o havia aprendido de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo (Gl 1:8-12).

Jesus também atesta a autoridade suprema das Escrituras: pelo modo como a usa, para estabelecer qualquer controvérsia: "está escrito"8 (exemplos: Mt 4:4,6,7,10; etc.), e ao afirmar explicitamente a autoridade das mesmas, dizendo em João 10:35 que "a Escritura não pode falhar."9

III. Usurpações da Autoridade das Escrituras
Apesar da sólida base bíblico-teológica em favor da doutrina reformada da autoridade suprema das Escrituras, hoje, como no passado, deparamo-nos com a mesma tendência geral de diminuir a autoridade das Escrituras. E isso ocorre de duas maneiras: por um lado, há a propensão em admitir fontes adicionais ou suplementares de autoridade, que tendem a usurpar a autoridade da Palavra de Deus. Por outro lado, há a tendência de limitar a autoridade das Escrituras, negando-a, subjetivando-a ou reduzindo o seu escopo.

Com relação à primeira dessas tendências, pelo menos três fontes suplementares usurpadoras da autoridade das Escrituras podem ser identificadas: a tradição (degenerada em tradicionalismo), a emoção (degenerada em emocionalismo) e a razão (degenerada no racionalismo). Sempre que um desses elementos é indevidamente enfatizado, a autoridade das Escrituras é questionada, diminuída ou mesmo suplantada.

A. A Tradição Degenerada em Tradicionalismo
Este foi um dos grandes problemas enfrentados pelo Senhor Jesus. A religião judaica havia se tornado incrivelmente tradicionalista. Havendo cessado a revelação, os judeus, já no segundo século antes de Cristo, produziram uma infinidade de tradições ou interpretações da Lei, conhecidas como Mishnah. Essas tradições foram cuidadosamente guardadas pelos escribas e fariseus por séculos, até serem registradas nos séculos IV e V A.D., passando a ser conhecidas como o Talmude,10 a interpretação judaica oficial do Antigo Testamento até o dia de hoje. Muitas dessas tradições judaicas eram, entretanto, distorções do ensino do Antigo Testamento. Mas tornaram-se tão autoritativas, que suplantaram a autoridade do Antigo Testamento. Jesus acusou severamente os escribas e fariseus da sua época, dizendo:

Em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens. Negligenciando o mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens. E disse-lhes ainda: Jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para guardardes a vossa própria tradição... invalidando a palavra de Deus pela vossa própria tradição que vós mesmos transmitistes... (Mc 7.7-9,13).11

O Apóstolo Paulo também denunciou essa tendência. Escrevendo aos colossenses, ele advertiu:

Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo... Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: Não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? (Cl 2.8,20-22).

Quinze séculos depois, os Reformadores se depararam com o mesmo problema: as tradições contidas nos livros apócrifos e pseudepígrafos, nos escritos dos pais da igreja, nas decisões conciliares e nas bulas papais também degeneraram em tradicionalismo. As tradições eclesiásticas adquiriram autoridade que não possuíam, usurpando a autoridade bíblica. É neste contexto que se deve entender a doutrina reformada da autoridade das Escrituras. Trata-se, primordialmente, de uma reação à posição da Igreja Católica.

Isto não significa, entretanto, que a tradição eclesiástica seja necessariamente ruim. Se a tradição reflete, de fato, o ensino bíblico, ou está de acordo com ele, não sendo considerada normativa (autoritativa) a não ser que reflita realmente o ensino bíblico, então não é má. Os próprios Reformadores produziram, registraram e empregaram confissões de fé e catecismos (os quais também são tradições eclesiásticas). Para eles, contudo, esses símbolos de fé não têm autoridade própria, só sendo normativos na medida em que refletem fielmente a autoridade das Escrituras.

O problema, portanto, não está na tradição, mas na sua degeneração, no tradicionalismo, que atribui à tradição autoridade inerente. O tradicionalismo atribui autoridade às tradições, pelo simples fato de serem antigas ou geralmente observadas, e não por serem bíblicas. Essa tendência acaba sempre usurpando a autoridade das Escrituras.

B. A Emoção Degenerada em Emocionalismo
Outra fonte de autoridade que sempre ameaça a autoridade das Escrituras é a emoção, quando degenerada em emocionalismo. Isto quase inevitavelmente conduz ao misticismo. Na esfera religiosa, freqüentemente é dado um valor exagerado à intuição, ao sentimento, ao convencimento subjetivo. Quando tal ênfase ocorre, facilmente esse sentimento subjetivo de convicção, pessoal e interno, é explicado misticamente, em termos de iluminação espiritual e revelação divina direta, seja por meio do Espírito, seja pela instrumentalidade de anjos, sonhos, visões, arrebatamentos, etc.

Não é que Deus não tenha se revelado por esses meios. Ele de fato o fez. Foi, em parte, através desses meios que a revelação especial foi comunicada à Igreja e registrada no cânon pelo processo de inspiração. O que se está afirmando é que o misticismo copia, forja essas formas reais de revelação do passado, para reivindicar autoridade que na verdade não é divina, mas humana (quando não diabólica). Essa tendência não é de modo algum nova. Eis as palavras do Senhor através do profeta Jeremias:

Assim diz o Senhor dos Exércitos: Não deis ouvido às palavras dos profetas que entre vós profetizam, e vos enchem de vãs esperanças; falam as visões do seu coração, não o que vem da boca do Senhor... Até quando sucederá isso no coração dos profetas que proclamam mentiras, que proclamam só o engano do próprio coração?... O profeta que tem sonho conte-o como apenas sonho; mas aquele em quem está a minha palavra, fale a minha palavra com verdade. Que tem a palha com o trigo? diz o Senhor (Jr 23.16,26,28).

Séculos depois o Apóstolo Paulo enfrentou o mesmo problema. Ele próprio foi instrumento de revelações espirituais verdadeiras, inspirado que foi para escrever suas cartas canônicas. Nessa condição, ele sabia muito bem o que eram sonhos, visões, revelações e arrebatamentos. Mas, ainda assim, advertiu aos colossenses, dizendo: "Ninguém se faça árbitro contra vós outros, pretextando humildade e culto dos anjos, baseando-se em visões, enfatuado sem motivo algum na sua mente carnal" (Cl 2:18). Tanto Jesus como os apóstolos advertem a Igreja repetidamente contra os falsos profetas, os quais ensinam como se fossem apóstolos de Cristo, mas que não passam de enganadores.

Pois bem, sempre que tal coisa ocorre, a autoridade das Escrituras é ameaçada. O misticismo, como degeneração das emoções (não se pode esquecer que também as emoções foram corrompidas pelo pecado) tende sempre a usurpar, a competir com a autoridade das Escrituras, chegando mesmo freqüentemente a suplantá-la. Na época dos Reformadores não foi diferente. Eles combateram grupos místicos por eles chamados de entusiastas12 que reivindicavam autoridade espiritual interior, luz interior, revelações espirituais adicionais que suplantavam ou mesmo negavam a autoridade das Escrituras. Esta tem sido igualmente uma das características mais comuns das seitas modernas, tais como mormonismo, testemunhas de Jeová, adventismo do sétimo dia, etc. Entre os movimentos pentecostais e carismáticos também não é incomum a emoção degenerar em emocionalismo, produzindo um misticismo usurpador da autoridade das Escrituras.

C. A Razão Degenerada em Racionalismo
A ênfase exagerada na razão também tende a usurpar a autoridade das Escrituras. O homem, devido a sua natureza pecaminosa, sempre tem resistido a submeter sua razão à autoridade da Palavra de Deus. A tendência é sempre tê-la (a razão) como fonte suprema de autoridade. Isto foi conseqüência da queda. Na verdade, foi também a causa, tanto da queda de Satanás como de nossos primeiros pais. Ambos caíram por darem mais crédito às suas conclusões do que à palavra de Deus. Desde então, essa soberba mental, essa altivez intelectual tem tendido sempre a minar a autoridade da Palavra de Deus, oral (antes de ser registrada) ou escrita.

Por que o ser humano, tendo conhecimento de Deus, não o glorifica como Deus nem lhe é grato? O Apóstolo Paulo explica: porque, suprimindo a verdade de Deus (Rm 1:18), "...se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos... pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura, em lugar do Criador...’’ (Rm 1:21-22,25).

Esta tem sido, sem dúvida, a causa de uma infinidade de heresias e erros surgidos no curso da história da Igreja. A heresia de Marcião, o gnosticismo, o arianismo, o docetismo, o unitarianismo, e mesmo o arminianismo são todos erros provocados pela dificuldade do homem em submeter sua razão à revelação bíblica. Todos preferiram uma explicação racional, lógica, em lugar da explicação bíblica que lhes parecia inaceitável. Assim, Marcião concebeu dois deuses, um do Antigo e outro do Novo Testamento. Por isso, também o gnosticismo fez distinção moral entre matéria e espírito. Já o arianismo originou-se da dificuldade de Ario em aceitar a eternidade de Cristo. Do mesmo modo, o docetismo surgiu da dificuldade de alguns em admitir um Cristo verdadeiramente divino-humano. O unitarianismo, por sua vez, decorre da recusa em aceitar a doutrina bíblica da Trindade, enquanto que o arminianismo surgiu da dificuldade de Armínio em conciliar a doutrina da soberania de Deus com a doutrina da responsabilidade humana (rejeitando a primeira).

A tendência da razão em usurpar a autoridade das Escrituras tem sido especialmente forte nos últimos dois séculos. O desenvolvimento científico e tecnológico instigou a soberba intelectual do homem. Assim, passou-se a acreditar apenas no que possa ser constatado, comprovado, pela razão e pela lógica. A ciência tornou-se a autoridade suprema, a única regra de fé e prática. E a Igreja passou a fazer concessões e mais concessões, na tentativa de harmonizar as Escrituras com a razão e com a ciência. O relato bíblico da criação foi desacreditado pela teoria da evolução; os milagres relatados nas Escrituras foram rejeitados como mitos; e muitos estudiosos das Escrituras passaram a assumir uma postura crítica, não mais submissa aos seus ensinos. Foi assim que surgiu o método de interpretação histórico-crítico em substituição ao método histórico-gramatical. Nele, é a suprema razão humana que determina o que é escriturístico ou mera tradição posterior, o que é milagre ou mito, o que é verdadeiro ou falso nas Escrituras.

Mas antes de se atribuir tanta autoridade à ciência, convém considerar a sua história. Quão falível e mutável é! A grande maioria dos "fatos" científicos de dois séculos atrás já foram rejeitados pela própria ciência. Além disso, com que freqüência meras teorias e hipóteses científicas são tomadas como fatos científicos comprovados!13

IV. Limitações da Autoridade das Escrituras
Além das tendências que acabei de considerar, propensas a usurpar a autoridade das Escrituras, existem outras, que tendem a limitar a autoridade bíblica, negando-a, subjetivando-a ou reduzindo o seu escopo. É o que têm feito a teologia liberal, a neo-ortodoxia e o neo-evangelicalismo, com relação a três dos principais aspectos da doutrina da autoridade das Escrituras. Estas três concepções de "autoridade" bíblica precisam ser entendidas. Elas estão sendo bastante divulgadas em nossos dias, e são, em certo sentido, até mais perigosas do que as tendências anteriormente mencionadas, por serem mais sutis. Este assunto pode ser melhor entendido considerando-se os três principais aspectos da doutrina da autoridade das Escrituras: sua origem (ou base), certeza (ou convicção) e escopo (ou abrangência).

A. Origem ou Base da Autoridade das Escrituras
A origem ou base da autoridade das Escrituras, como já foi mencionado, encontra-se na sua autoria divina. As Escrituras são autoritativas porque são de origem divina: o Espírito Santo é o seu autor primário. Para os Reformadores, as Escrituras são autoritativas porque são a Palavra de Deus inspirada. Por isso são infalíveis, inerrantes, claras, suficientes, etc.

A teologia liberal (racionalista) nega a própria base da autoridade da Escritura, negando a sua origem divina. Para ela, as Escrituras são mero produto do espírito humano, expressando verdades divinas conforme discernidas pelos seus autores, bem como erros e falhas características do homem. Sua autoridade, portanto, não é divina nem inerente, mas humana, devendo ser determinada pelo julgamento da razão crítica. Eis o que afirmam: "A verdade divina não é encontrada em um livro antigo, mas na obra contínua do Espírito na comunidade, conforme discernida pelo julgamento crítico racional."14 De acordo com a teologia liberal, "nós estamos em uma nova situação histórica, com uma nova consciência da nossa autonomia e responsabilidade para repensar as coisas por nós mesmos. Não podemos mais apelar à inquestionável autoridade de um livro inspirado."15

B. Certeza da Autoridade das Escrituras
A certeza ou convicção da autoridade das Escrituras16 provém do testemunho interno do Espírito Santo. A excelência do seu conteúdo, a eficácia da sua doutrina e a sua extraordinária unidade são algumas das características das Escrituras que demonstram a sua autoridade divina. Contudo, admitimos que "a nossa plena persuasão e certeza da sua infalível verdade e divina autoridade provém da operação interna do Espírito Santo, que pela Palavra e com a Palavra, testifica em nossos corações."17

O testemunho da Igreja com relação à excelência das Escrituras pode se constituir no meio pelo qual somos persuadidos da sua autoridade, mas não na base ou fundamento da nossa persuasão. A nossa persuasão da autoridade da Bíblia dá-se por meio do testemunho interno do Espírito Santo com relação à sua inspiração. Na concepção reformada, se alguém crê, de fato, na autoridade suprema das Escrituras como regra de fé e prática, o faz como resultado da ação do Espírito Santo. É ele, e só ele, quem pode persuadir alguém da autoridade da Bíblia.

Essa persuasão não significa de modo algum uma revelação adicional do Espírito. Significa, sim, que a ação do Espírito na alma de uma pessoa, iluminando seu coração e sua mente em trevas, regenerando-a, fazendo-a nova criatura, dissipa as trevas espirituais da sua mente, remove a obscuridade do seu coração, permitindo que reconheça a autoridade divina das Escrituras. O Apóstolo Paulo trata deste assunto escrevendo aos coríntios. Ele explica, na sua primeira carta, que, "o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente" (1 Co 2.14). O homem natural, em estado de pecado, perdeu a sua capacidade original de compreender as coisas espirituais. Ele não pode, portanto, reconhecer a autoridade das Escrituras; ele não tem capacidade para isso. Na sua segunda carta aos coríntios o Apóstolo é ainda mais explícito, ao observar que,

...se o nosso evangelho ainda está encoberto, é para os que se perdem que está encoberto, nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus... Porque Deus que disse: de trevas resplandecerá luz —, ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo (2 Co 4.3-4,6).

O que Paulo afirma aqui é que o homem natural, o incrédulo, está cego como resultado da obra do diabo, que o fez cair. Nesse estado, ele está como um deficiente visual, que não consegue perceber nem mesmo a luz do sol. Pode-se compreender melhor o testemunho interno do Espírito com esta ilustração. O testemunho do Espírito não é uma nova luz no coração, mas a sua ação através da qual ele abre os olhos de um pecador, permitindo-lhe reconhecer a verdade que lá estava, mas não podia ser vista por causa da sua cegueira espiritual.

Deve-se ter em mente, entretanto — e esse é o ponto enfatizado aqui —, que esse testemunho interno do Espírito Santo diz respeito à certeza do crente com relação à plena autoridade das Escrituras, e não à própria autoridade inerente das Escrituras. A convicção de um crente de que as Escrituras têm autoridade é subjetiva, mas a autoridade das Escrituras é objetiva. Esteja-se ou não convencido da sua autoridade, a Bíblia é e continua objetivamente autoritativa. A neo-ortodoxia existencialista confunde estas coisas e defende a subjetividade da própria autoridade da Bíblia. Para eles, a revelação bíblica só é verdade divina quando fala ao nosso coração. Como dizem, "as Escrituras não são, mas se tornam a Palavra de Deus" quando existencializadas.18

C. Escopo da Autoridade das Escrituras
Essas posições da teologia liberal e da neo-ortodoxia com relação à origem e à certeza da autoridade das Escrituras são seríssimas. Contudo, talvez mais séria ainda (por ser mais sutil) é a questão relacionada ao escopo da autoridade das Escrituras.

Uma nova concepção da autoridade das Escrituras tem surgido entre os eruditos evangélicos (inclusive reformados de renome, tais como G. C. Berkouwer19), conhecida como neo-evangélica. O neo-evangelicalismo limita o escopo (a área) da autoridade das Escrituras ao seu propósito salvífico. Segundo essa concepção, a autoridade das Escrituras limita-se à revelação de assuntos diretamente relacionados à salvação, a assuntos religiosos.20

A doutrina neo-evangélica faz diferença entre o conteúdo salvífico das Escrituras e o seu contexto salvífico, reivindicando autoridade e inerrância apenas para o primeiro. Mas tal posição não reflete nem se coaduna com a posição reformada e protestante histórica. Para esta, o escopo da autoridade das Escrituras é todo o seu cânon. É verdade que a Bíblia não se propõe a ser um compêndio científico ou um livro histórico. Mas, ainda assim, todas as afirmativas nelas contidas, sejam elas de caráter teológico, prático, histórico ou científico, são inerrantes e autoritativas.21

Os principais problemas relacionados com a posição neo-evangélica quanto à autoridade das Escrituras são os seguintes: Primeiro, como distinguir o conteúdo salvífico do seu contexto salvífico? É impossível. As Escrituras são a Palavra de Deus revelada na história. Segundo, como delimitar o que está ou não está diretamente relacionado ao propósito salvífico, se o propósito da obra da redenção não é meramente salvar o homem, mas restaurar o cosmo? Que porções das Escrituras ficariam de fora do escopo da salvação? Como Ridderbos admite, "a Bíblia não é apenas o livro da conversão, mas também o livro da história e o livro da Criação..."22 Que áreas da vida humana ficariam de fora da obra da redenção? A arte, a ciência, a história, a ética, a moral? Quem delimitaria as fronteiras entre o que está ou não incluído no propósito salvífico? Admitir, portanto, o conceito neo-evangélico de autoridade das Escrituras é cair na cilada liberal do cânon dentro do cânon, e colocar a razão humana como juiz supremo de fé e prática, pois neste caso competirá ao homem determinar o que é ou não propósito salvífico.

Conclusão
Em última instância, a questão da autoridade das Escrituras pode ser resumida na seguinte pergunta: quem tem a última palavra, Deus, falando através das Escrituras, ou o homem, por meio de suas tradições, sentimentos ou razão? A resposta dos Reformadores foi clara. Embora reconhecendo que o propósito especial das Escrituras não é histórico, moral ou científico, mas salvífico, eles não diminuíram a sua autoridade de forma alguma: nem por adições ou suplementos, nem por reduções ou limitações de qualquer natureza. A fé reformado-puritana reconhece a autoridade de todo o conteúdo das Escrituras, e sua plena suficiência e suprema autoridade em matéria de fé e práticas eclesiásticas.

Tão importante foi a redescoberta destas doutrinas pelos Reformadores, que pode-se afirmar que, da aplicação prática das mesmas, decorreu, em grande parte, a profunda reforma doutrinária, eclesiástica e litúrgica que deu origem às igrejas protestantes. Todas as doutrinas foram submetidas à autoridade das Escrituras. Todos os elementos de culto, cerimônias e práticas eclesiásticas foram submetidos ao escrutínio da Palavra de Deus. A própria vida (trabalho, lazer, educação, casamento, etc.) foi avaliada pelo ensino suficiente e autoritativo das Escrituras. Muito entulho doutrinário teve que ser rejeitado. Muitas tradições e práticas religiosas acumuladas no curso dos séculos foram reprovadas quando submetidas ao teste da suficiência e da autoridade suprema das Escrituras. E a profunda reforma religiosa do século XVI foi assim empreendida.

Mas muito tempo já se passou desde então. O evangelicalismo moderno recebeu, especialmente do século passado, um legado teológico, eclesiástico e litúrgico que precisa ser urgentemente submetido ao teste da doutrina reformada da autoridade suprema das Escrituras. É tempo de reconsiderar as implicações desta doutrina. É tempo de reavaliar a nossa fé, nossas práticas eclesiásticas e nossas próprias vidas à luz desta doutrina. Afinal, admitimos que a Igreja reformada deve estar sempre se reformando — não pela conformação constante às últimas novidades, mas pelo retorno e conformação contínuos ao ensino das Escrituras.

Sabendo que a nossa natureza pecaminosa nos impulsiona em direção ao erro e ao pecado, conhecendo o engano e a corrupção do nosso próprio coração, reconhecendo os dias difíceis pelos quais passa o evangelicalismo moderno (particularmente no Brasil), e a ojeriza doutrinária, a exegese superficial e a ignorância histórica que em grande parte caracterizam o evangelicalismo moderno no nosso país, não temos o direito de assumir que nossa fé e práticas eclesiásticas sejam corretas, simplesmente por serem geralmente assim consideradas. É necessário submeter nossa fé e práticas eclesiásticas à autoridade suprema das Escrituras.

Assim fazendo, não é improvável que nós, à semelhança dos Reformadores, também tenhamos que rejeitar considerável entulho teológico, eclesiástico e litúrgico acumulados nos últimos séculos. Não é improvável que venhamos a nos surpreender, ao descobrir um evangelicalismo profundamente tradicionalista, subjetivo e racionalista. Mas não é improvável também que venhamos a presenciar uma nova e profunda reforma religiosa em nosso país. Que assim seja!